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Artigo Especial

Queimaduras em crianças durante a pandemia da COVID-19: Representação da mídia digital brasileira

Burns in children during the COVID-19 pandemic: Representation of Brazilian digital media

Raquel Pan1; Ana Luisa da Cruz Franciscon2; Isabella Luiz Resende3; Mariana Karolina Martins Rosa de Jesus4; Stefano Lúcio Magalhães de Carvalho5; Tanyse Galon6

DOI: 10.5935/2595-170X.20230015

RESUMO

OBJETIVO: Analisar a representação de casos de queimaduras durante a pandemia no Brasil disponíveis na mídia digital.
MÉTODO: Pesquisa documental com análise qualitativa dos dados. Dados obtidos de reportagens disponíveis na mídia digital brasileira, publicadas entre 11 de março de 2020 e 11 de março de 2022, em formato escrito, acerca de crianças de até 12 anos incompletos que sofreram queimaduras no Brasil durante a pandemia da COVID-19, independentemente de ser acidente ou violência. A ferramenta de busca utilizada foi o Google® a partir de combinações de palavras-chave. A análise temática indutiva foi utilizada para a interpretação dos dados.
RESULTADOS: Foram selecionadas 179 matérias: 130 foram acidentes, predominantes na Região Sudeste. Do total, 66 casos descreveram a identidade do responsável, 76 revelaram a identificação das vítimas e 34 mostraram fotos do rosto. Houve predominância do sexo masculino (90 casos); 18 matérias relataram mais de uma criança envolvida no acontecimento. Três categorias foram elaboradas: Apresentação das matérias; Condições relacionadas às queimaduras domésticas; Queimaduras infantis: acidente ou violência?.
CONCLUSÕES: As reportagens mostraram aumento no número de queimaduras em crianças durante a pandemia relacionadas, principalmente, ao distanciamento social, à supervisão inadequada dos pais, ao uso do álcool como medida de prevenção contra o Coronavírus e como item para cozinhar alimentos, e devido a mudanças na situação socioeconômica, como o aumento do preço do gás de cozinha. Também foram relatados casos de violência envolvendo queimaduras. Pode-se observar que a divulgação dos casos ocorreu de forma descritiva, informativa e preventiva.

Palavras-chave: Criança. Queimaduras. COVID-19. Pandemias. Meios de Comunicação de Massa.

ABSTRACT

OBJECTIVE: To analyze the representation of burn cases during the pandemic in Brazil available in digital media.
METHODS: This is a documentary research with qualitative data analysis. The data were obtained from available articles in digital media published between March 11, 2020 and March 11, 2022, in written format, about children under the age of 12 years old that burned in Brazil during the COVID-19 pandemic, despite being accident or violence. The search tool used was Google® based on keyword combinations. The inductive thematic analysis was used for data interpretation.
RESULTS: There were 179 articles selected: 130 were accidents, mainly in the Southeast Region. From the total, 66 describe the responsible person's identity, 76 identify the victim and 34 show their face in photos. The majority was male (90 cases); 18 news reported more than one child involved in the situation. Three categories were elaborated: Presentation of the articles; Conditions related to domestic burns; Childhood burns: accident or violence?.
CONCLUSIONS: The reports showed an increase in the number of burns in children during the pandemic, mainly related to social distancing, inadequate supervision of parents, alcohol use, as a preventive measure against coronavirus and as an item for cooking food, and due to changes in socioeconomic situation, such as the increase in the price of cooking gas. Cases of violence involving burns were also reported. It can be observed that the dissemination of cases occurred in a descriptive, informative and preventive way.

Keywords: Child. Burns. COVID-19. Pandemics. Mass Media.

INTRODUÇÃO


Durante a pandemia da COVID-19, crianças e adolescentes ficaram reclusos em suas casas. Muitas vezes, os cuidadores e o domicílio não estavam completamente preparados para o acúmulo de tarefas e para as situações às quais advieram, tornando o lar um ambiente não seguro ao bem-estar físico e mental desses menores. Já outras famílias não conseguiram se manter em trabalho remoto e optaram por buscar ajuda de vizinhos e amigos. Todo esse ambiente gerou angústia e irritabilidade, expondo a família a constantes riscos, tensões e fragilidades nos cuidados1. Nesse contexto, houve um aumento no número de acidentes domésticos e agravos, expondo esses menores a diversos riscos, inclusive à COVID-192.


As medidas de controle da pandemia, fornecidas pelo Ministério da Saúde, consoantes às diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS), incluíram o distanciamento social e as medidas ampliadas de higiene para minimizar e evitar a propagação do vírus. Essa dinâmica social, aliada ao aumento do uso de álcool para a prevenção de doenças e para o posterior manuseio de fontes de calor, aumentou o risco de acidentes por queimaduras3.


O alerta para o risco de aumento dos casos de acidentes domésticos e para os perigos do uso de álcool líquido a 70% tornaram-se latentes na pandemia. Mais de 40 veículos de comunicação de abrangência nacional falaram sobre os acidentes domésticos, contribuindo para que a mensagem da prevenção chegasse ao maior número de pessoas4.


Queimaduras na infância são a terceira causa de morte acidental e têm alta incidência em todo o mundo5. Segundo os dados da Criança Segura, em 2019, 19% das internações por acidentes no Brasil foram de crianças vítimas de queimaduras, com idades entre zero e 14 anos.


Os principais fatores de riscos que acometem as vítimas de queimaduras são constituídos por manipulação de álcool e substâncias inflamáveis, além de fatores socioeconômicos e condições clínicas6. Para as crianças, o risco de lesão não intencional no ambiente domiciliar envolve múltiplos fatores, como idade e sexo, falta de supervisão de um adulto, nível socioeconômico familiar, comportamento de risco assumido pelos responsáveis, acessibilidade e exposição ao perigo7.


As lesões por queimaduras são consideradas uma das formas mais graves de trauma, pois, além de gerar problemas físicos, podem causar sequelas psíquicas e alterações nos âmbitos socioeconômicos das vítimas8. Segundo o Ministério da Saúde, as queimaduras são consideradas um problema de saúde pública e, aproximadamente, 50% das ocorrências têm a participação de crianças, sobretudo em contexto residencial9.


Diante disso, percebeu-se um elevado número de casos de crianças vítimas de queimaduras durante a pandemia da COVID-19 e, tratando-se de acidentes domésticos e de medidas preventivas, a mídia tem um grande impacto social na divulgação e na disseminação de informações que contribuem na sensibilização para a adoção de comportamentos mais seguros. Portanto, este estudo teve como objetivo analisar a representação de casos de queimaduras durante a pandemia no Brasil disponíveis na mídia digital.


 


MÉTODO


Esta é uma pesquisa documental com análise qualitativa dos dados, na qual se utilizam documentos que não sofreram tratamento analítico10. Extraem-se elementos informativos de um documento original, a fim de expressar seu conteúdo de forma abreviada, fazendo com que o documento primário seja convertido em um documento secundário. A utilização desse método é apropriada quando o interesse está em estudar a expressão ou a linguagem dos sujeitos envolvidos em um determinado assunto em produções escritas. Ressaltamos que a pesquisa documental não deve ser confundida com a pesquisa bibliográfica, por não utilizar dados que passaram por análise10.


No contexto da pesquisa qualitativa, a análise documental é um método relevante, seja complementando as informações obtidas por meio de outras técnicas ou buscando novos aspectos de um assunto10.


Entre as vantagens da pesquisa documental, pode-se destacar que os documentos são uma fonte confiável e rica, em que os pesquisadores podem extrair informações a fim de fundamentar suas afirmações. Uma vantagem adicional é o fato de que os documentos podem ser consultados diversas vezes, permitindo maior acessibilidade e menor custo financeiro10.


Este estudo foi realizado, inteiramente, de forma online com o uso de diferentes computadores e notebooks dos pesquisadores a fim de diminuir a influência dos algoritmos dos sites de busca e de aumentar o acesso a novas reportagens. A ferramenta de busca utilizada para fazer pesquisas na Internet foi o Google®. A escolha desse buscador deve-se ao fato de ser o mais conhecido site de buscas, oferecer pesquisas rápidas e avançadas, além de ser gratuito.


A inclusão das reportagens ocorreu devido ao pronunciamento oficial feito pelo diretor-geral da OMS, no dia 11 de março de 2020, sobre a situação de pandemia da COVID-1911. A escolha da faixa etária analisada deve-se ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), regulamentado pela Lei Federal nº 8.069/1990, que considera como criança o ser humano até doze anos de idade incompletos e como adolescente, entre doze e dezoito anos de idade12. Estipulou-se o recorte temporal de 24 meses, durante o período de pandemia, sendo de 11 de março de 2020 a 11 de março 2022.


Como critério de inclusão, foram incluídas reportagens de jornais, revistas e portais disponíveis na mídia digital brasileira, em formato escrito, sobre crianças de até 12 anos incompletos que sofreram queimaduras no Brasil durante a pandemia da COVID-19, independentemente de ser acidente ou violência.


Foram excluídas: reportagens de periódicos que possuíam sistema de assinatura, gravadas em áudio e/ou vídeo, internacionais, sobre indivíduos maiores de 12 anos completos e anteriores a 11 de março de 2020 e reportagens sobre iatrogenia que causaram queimaduras. As notícias que possuíam conteúdos em formato escrito e audiovisual tiveram, apenas, o conteúdo escrito analisado.


A coleta de dados ocorreu no mês de dezembro de 2021 e foi refeita no mês de março de 2022. Foram utilizadas as seguintes palavras-chaves em diferentes combinações: criança, crianças, queimadura, queimaduras, COVID-19, Coronavírus, pandemia, pandemias, acidente, acidentes, vítima e vítimas. O processo de busca e de seleção das reportagens está descrito na Figura 1.


 



 


Duas tabelas no Programa Microsoft® Office Excel foram preenchidas com as matérias selecionadas. A primeira tabela classificou as reportagens abordando: fonte de publicação, título, data e endereço de publicação. Na segunda tabela, foi realizada a categorização dos casos presentes nas matérias, incluindo: identificação; idade e gênero da vítima; identificação e idade do responsável pela criança; evento; agente etiológico envolvido; áreas do corpo da vítima que foram afetadas; porcentagem de superfície corporal queimada (%SCQ); óbito; fotos do rosto da vítima; cenário em que ocorreu o acidente ou a violência e cidade/estado/região onde a criança e o responsável residiam. Posteriormente, foi realizada a análise do conteúdo dessas reportagens para verificar como esses eventos foram representados pela mídia digital brasileira.


Neste estudo, foi utilizada a análise de dados indutiva, realizada quando não há conhecimento anterior suficiente sobre os dados13. Os processos da análise indutiva são: codificação aberta, criação de categorias e abstração. A primeira fase (codificação aberta) significa que as informações e os títulos são escritos no texto durante a leitura. Após isso, as informações semelhantes ou relacionadas são agrupadas para formar categorias com o objetivo de aumentar a compreensão e de produzir conhecimento. Por meio da criação de categorias, a terceira fase (abstração) significa formular uma descrição geral da pesquisa por meio das categorias13.


Três autoras fizeram a leitura, separadamente, das reportagens e, posteriormente, fizeram a discussão para potenciais esclarecimentos de dúvidas e inclusão das matérias a serem analisadas. As reportagens foram utilizadas como fonte de dados e classificadas em ordem crescente de data de publicação, ou seja, a R1 foi a primeira reportagem publicada.


A necessidade de aprovação por um Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CEP) foi dispensada, pois as informações coletadas são de acesso público, em meio digital.


 


RESULTADOS


A seleção foi constituída por 179 reportagens: 27 foram publicadas no ano de 2020, 133 em 2021 e 19 em 2022. Em relação às mídias, 131 delas foram publicadas em portais digitais, 33 em jornais digitais, cinco em revistas digitais, cinco publicadas em sites, quatro em rádio digital e uma em diário digital.


Foram registrados 130 eventos como acidentes, 32 como violência, nove como suspeita de violência e oito como indeterminado. A maioria dos acidentes divulgados na mídia ocorreu no mês de julho, com 26 acidentes, seguido do mês de setembro, com 25 acidentes, e de junho, com 16 acidentes. A maioria das notícias sobre violência ocorreu no mês de novembro, seguido de dezembro. Em 47 matérias não foi divulgado o mês do evento.


A região do país onde mais ocorreram casos de crianças que sofreram queimaduras foi a Região Sudeste, com 74 casos, predominando o estado de São Paulo, com 51 casos, seguido de Minas Gerais e do Rio de Janeiro. A Região Nordeste foi a segunda região com maior número de ocorrências, com 33 casos.


Do total de matérias, 66 casos descreveram a identidade do responsável, 76 revelaram a identificação das vítimas e 34 mostraram fotos do rosto. Quanto ao sexo, a maior parte foi do sexo masculino, com 90 casos. 18 matérias relataram mais de uma criança envolvida no acontecimento. Em relação às faixas etárias, crianças de zero a 12 meses representaram 38 casos; um a dois anos, 50 casos; três a quatro anos, 24 casos; cinco a seis anos, 13 casos; sete a 11 anos, 39 casos e, em cinco reportagens, não foi relatada.


Quanto à idade do responsável, 44 casos revelaram e, em relação à identidade do responsável, 66 casos revelaram o nome completo por extenso.


Quanto à profundidade, uma criança teve queimaduras de primeiro grau; 23, de segundo grau; 15, de terceiro grau e oito crianças, de quarto grau. Cinco vítimas tiveram queimaduras de primeiro e segundo graus; oito, de segundo e terceiro graus; duas, de terceiro e quarto graus e uma, de primeiro, segundo e terceiro graus. Os tipos de queimaduras mais frequentes foram: as térmicas (112), seguidas das químicas (31) e das elétricas (nove). O agente causal de maior incidência foi a escaldadura (37), seguido do álcool (19).


Os membros superiores (43) foram a área do corpo mais afetada, seguida dos membros inferiores (36). O domicílio (141) foi o local de maior ocorrência dos acidentes e, sobre notícias de maus-tratos (32), sete casos também ocorreram no domicílio. 46 casos indicaram o falecimento da criança em decorrência das queimaduras.


O Quadro 1 apresenta uma caracterização das notícias sobre queimaduras em crianças na pandemia da COVID-19, conforme título da matéria, data, fonte de publicação, estado e principais resultados.


 



 


Três categorias foram elaboradas a partir dos textos escritos veiculados na mídia: 'Apresentação das matérias'; 'Condições relacionadas às queimaduras domésticas'; e 'Queimaduras infantis: acidente ou violência?'.


Apresentação das matérias


Algumas notícias divulgadas sobre crianças que sofreram queimaduras expuseram os casos de forma descritiva, pontual, com linguagem acessível e sem aprofundamento das informações.


"Uma criança de três anos foi socorrida pelo Corpo de Bombeiros e levada ao Pronto Socorro da Vila Virgínia, em Ribeirão Preto (SP), com queimadura nas mãos após um incêndio na casa dela na manhã desta terça-feira (1º)." (R16)


Algumas reportagens utilizaram dados locais, regionais ou nacionais para atrair a atenção do leitor ou mostrar a relevância da temática.


"Com crianças e adultos passando mais tempo em casa, por conta das orientações de se evitar aglomeração em meio à pandemia, a ala de queimados da Santa Casa já sentiu o aumento do número de acidentes envolvendo fogo. Só entre janeiro e fevereiro deste ano, as internações aumentaram 63% em comparação ao mesmo período do ano passado." (R35)


Profissionais de saúde, o Corpo de Bombeiros, entre outros, divulgaram ações importantes e educativas para evitar acidentes domésticos.


"A médica orienta que o cuidado deve ser ainda maior quando se trata de crianças. 'Você nunca pode deixá-los sozinhos, tem de tirar tudo o que tiver ao alcance de líquidos inflamáveis'." (R35)


"A recomendação da corporação é que panelas quentes e objetos cortantes sejam colocados em locais de difícil acesso dos menores." (R21)


A maioria das matérias selecionadas sobre choque elétrico divulgou instruções que devem ser observadas para minimizar e evitar acidentes com energia elétrica.


"Segundo o médico, aparelhos celulares não devem ser deixados em locais úmidos, precisam ser desligados enquanto carregados e apenas carregadores originais podem ser utilizados." (R77)


Algumas, para minimizar a exposição a potenciais riscos, trouxeram o relato de cuidadores de crianças que sofreram queimaduras e orientações de prevenção para outros acidentes.


"[nome da criança] não se feriu e a mãe divulgou o vídeo como alerta. "O intuito da postagem é salvar vidas. Se alguma pessoa ver esse vídeo, pode ficar mais atenta às panelas com cabo virado ou baldes em casa, por exemplo.", conclui. (R79)


"Espero que a nossa história sirva de alerta para outros pais, para tomarem cuidado com o álcool", completa." (R07)


Algumas matérias abordaram a campanha Junho Laranja, promovida pela Sociedade Brasileira de Queimaduras (SBQ), advertindo para os riscos de queimaduras.


"Neste ano, devido ao isolamento social provocado pela pandemia, a campanha traz o lema "Com Fogo não se Brinca", focando no público infantil, que é vítima de 40% desse tipo de acidente." (R03)


Condições relacionadas às queimaduras domésticas


Essa categoria mostrou como a pandemia da COVID-19 influenciou o aumento de acidentes domésticos por queimaduras em crianças. Foram elaboradas duas subcategorias para explicar os fatores que podem estar relacionados às queimaduras em crianças nas residências: 'Condições socioeconômicas' e 'Supervisão inadequada dos pais/cuidadores'.


Condições socioeconômicas


A maioria das notícias retratou um cenário de pessoas em condições socioeconômicas desfavoráveis e as crianças suscetíveis a acidentes em âmbito domiciliar.


"Em uma de suas brincadeiras de crianças, [nome da criança], 3, sentiu-se atraído pelo alaranjado das chamas que saíam do fogão à lenha. Numa questão de segundos, enquanto a avó preparava o café da manhã, a criança passou correndo perto da chaleira fervente e colocou os dedos [...] Apesar da família ter fogão em casa, os últimos anos têm sido difíceis. O gás de cozinha virou objeto cada vez mais raro [...]" (R68)


"[nome da criança] e sua família moram em um barraco coberto com lona e pedaços de palha, com muitas pulgas, sem estrutura nenhuma e muito menos móveis." (R120)


Diversas matérias divulgaram que a instabilidade econômica do país impactou as famílias brasileiras, sobretudo, com o aumento do preço do gás de cozinha.


"A mulher, que passa por dificuldades financeiras, não tinha dinheiro para o gás e resolveu comprar etanol em um posto de gasolina e improvisou um fogareiro. [...] o líquido entrou em combustão causando as queimaduras na mãe e na criança." (R106)


A alta inflação fez com que as famílias utilizassem outras fontes de energia para a cocção provocando acidentes. O tipo de fonte mais frequente foi o álcool, com 20 registros, seguido da lenha, com três eventos.


"Com o preço do botijão de gás chegando a quase R$100, a solução para muitas famílias é usar lenha e outros materiais inflamáveis para preparar comida, o que representa um risco à saúde das crianças." (R68)


Supervisão inadequada dos pais/cuidadores


Grande parte das matérias mostrou a inexperiência ou a incapacidade dos cuidadores em prever situações de perigo no ambiente doméstico, aumentando o risco de acidentes por queimaduras.


"Nos distraímos na pia fazendo café, ela foi engatinhando e se apoiou no forno com as duas mãozinhas para ficar em pé." (R79)


"[...] [nome da mãe] ressalta que não sabia que o álcool poderia queimar a córnea do seu filho. "Imaginava que se caísse nos olhos poderia arder, mas não fazer esse estrago." (R07)


Algumas notícias relataram que os pais/cuidadores deixaram as crianças sozinhas em casa devido a algum compromisso considerado breve.


"No dia que aconteceu o acidente, a mãe [...] precisou deixar as crianças em casa porque tinha uma consulta médica marcada para o início da manhã." (R105)


"A auxiliar de enfermagem falou que deixava a filha com as babás para poder ir trabalhar." (R156)


A falta de cuidado dos pais/cuidadores, enquanto as crianças usam objetos conectados à rede elétrica, pode contribuir para explosões e acidentes fatais.


"- 'Estava fazendo a comida e ela no celular, quando ouvi um barulho alto. Ao ir na sala percebi que a minha filha estava caída no chão com o rosto queimado'." (R44)


"Um bebê de oito meses [...] morreu após receber um choque elétrico ao morder o fio do carregador de celular que estava plugado na tomada." (R40)


Queimaduras na infância: acidente ou violência?


A maioria das notícias divulgou acidentes que ocorreram no ambiente domiciliar, o que elevou o número de registros de queimaduras devido à reclusão da COVID-19.


"Com o decorrer da pandemia da Covid-19, o aumento de acidentes domésticos entre crianças e adolescentes com menos de 15 anos foi registrado em todo país." (R74)


Durante o isolamento social, houve um aumento da violência contra crianças. As matérias divulgaram, principalmente, casos de crianças vítimas de violência pelos pais/cuidadores.


"O pai da criança, bêbado, foi cozinhar salsichas ao longo da noite, ferveu água e deixou cair nas costas da criança. A mãe, preocupada que esse fato gerasse consequências para ele, em conluio com o mesmo, bolou uma história e acusou a babá." (R149)


Algumas notícias mostraram que ser mãe jovem pode contribuir para a ocorrência de acidentes domésticos e violências, a exemplo de relatos de casos de mães com idades entre 19 e 21 anos.


"Foi o que aconteceu com a autônoma [nome completo da mãe], de 19 anos, que perdeu seu filho após complicações causadas por queimaduras de 2º grau." (R13)


"Uma denúncia feita por médicos [...] botou um ponto final em uma rotina de tortura e agressões que eram cometidas por uma mãe, de 19 anos, contra a própria filha, uma menina de apenas 11 meses." (R142)


Em algumas notícias, observou-se a figura do companheiro da mãe/padrasto da criança envolvido nos atos de agressões e crimes.


"Ele quebrou um dos braços e teve uma hemorragia no abdômen. A criança também tem marcas de mordida e queimadura de cigarro." (R22)


"Duas crianças, de 3 e 6 anos, foram resgatadas de um barraco com queimaduras após o companheiro da mãe incendiar a estrutura [...]." (R134)


Além disso, em algumas reportagens, os pais suspeitaram que a criança estava sendo vítima de maus-tratos pela babá, o que culminou na realização de denúncia às polícias Civil e Militar.


"A Polícia Civil investiga denúncia de maus-tratos após bebê de um ano ter as mãos queimadas com água quente [...]" (R157)


 


DISCUSSÃO


Os eventos mais divulgados na mídia digital brasileira foram acidentes (72,6%). Os acidentes domésticos, em sua maioria, são eventos complexos, não intencionais e evitáveis14. Esses ocasionam custos econômicos, sociais e emocionais, repercutem na família e na sociedade, afetando, negativamente, crianças e adolescentes14.


Neste estudo, o maior número de queimaduras ocorreu no ano de 2021, o que coincide com um período de elevadas taxas de desemprego no Brasil, que chegou a atingir cerca de 14,3 milhões de brasileiros15. Esses achados revelam a superlotação das famílias em suas casas devido ao isolamento social, à supervisão inadequada dos cuidadores e ao armazenamento de substâncias inflamáveis. Essas condições, intensificadas pela pandemia da COVID-19, são os principais fatores de risco para queimaduras em crianças16.


Observou-se o predomínio de queimaduras nas regiões Sudeste, Nordeste e Centro-Oeste. As regiões Nordeste e Centro-Oeste são grandes produtoras agrícolas de cana-de-açúcar, sendo o açúcar matéria-prima para a produção do álcool17. Um estudo multicêntrico mostrou a incidência de queimaduras por álcool durante a pandemia da COVID-19 no Brasil, sendo o Centro de Tratamento de Queimaduras (CTQ) do Hospital da Restauração Governador Paulo Guerra, localizado em Pernambuco, o responsável pelo maior número de casos de queimaduras por álcool (38,4%), seguido do CTQ do Hospital João XXIII, em Minas Gerais, com 19,5% dos casos17.


Um outro estudo18 mostrou que, apesar do alto índice de queimaduras no Brasil, até recentemente havia apenas 52 serviços especializados no tratamento de queimaduras em 16 dos 27 estados da Federação, sendo a maioria na Região Sudeste e nenhum na Região Norte. Em 2006, o Hospital Metropolitano de Urgência e Emergência (HMUE) de Ananindeua, localizado em Belém, estado do Pará, tornou-se o hospital de referência para pacientes queimados na Região Norte18. Consonante, as maiores densidades demográficas do Brasil se encontram nas regiões Sudeste e Nordeste. O elevado número de habitantes, nessas regiões, pode justificar a maior prevalência de acidentes por queimaduras. Fatores relacionados aos costumes regionais podem estar associados a maiores índices de acidentes por queimaduras, como os festejos juninos do Nordeste. A queima de fogueiras e os fogos de artifício de forma indiscriminada podem gerar situações de perigo e aumentar os acidentes19.


Ao analisar a representação das crianças na mídia, percebem-se violações à dignidade e à privacidade, com a divulgação de fotos do rosto da criança e do nome completo por extenso. No que confere à legislação nacional, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) estabelece que "é dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor"12.


Além disso, o jornalismo profissional é um elemento-chave para melhorar a qualidade das reportagens relacionadas aos direitos humanos e à sociedade. O desafio diário das empresas de comunicação é sentido, especialmente, na cobertura às crianças e aos seus direitos. Deve-se haver uma discussão constante sobre o processo que pode ter levado ou levou à ocorrência desses eventos20.


Conforme as notícias deste estudo, crianças do sexo masculino foram as mais acometidas pelas queimaduras. O gênero é considerado um fator pré-evento a partir do final do primeiro ano de vida, e os meninos têm duas vezes mais chances de sofrer injúrias do que as meninas, diferença que aumenta com a idade21. Aos meninos, é conferida a liberdade de brincar sem supervisão direta, o que abre precedente para que as brincadeiras masculinas sejam mais agressivas, expondo-os a situações de risco22.


A faixa etária de um e dois anos foi a mais acometida por queimaduras. Os acidentes envolvendo crianças menores de cinco anos ocorrem em casa, local onde passam grande parte do tempo. No ambiente doméstico, as crianças nessa faixa etária enfrentam uma grande variedade de riscos à saúde e à vida devido ao seu desenvolvimento físico e psicológico limitado e porque seus cuidadores têm pouca habilidade para diminuir os riscos de acidentes23. Destaca-se que elas estão vulneráveis a esse tipo de acidente em função do acelerado desenvolvimento psicomotor, curiosidade aguçada, maior dependência e necessidade de supervisão de um adulto7.


A profundidade das queimaduras depende de elementos como temperatura e duração da energia térmica aplicada à pele. Crianças com idade inferior a quatro anos não suportam queimaduras, pois a pele é mais sensível do que a de um adulto. Queimaduras superficiais na população infantil podem, rapidamente, transformar-se em profundas24. Neste estudo, os resultados indicaram maior predominância de queimaduras de segundo grau. Os líquidos em alta temperatura como agente causal, com contatos rápidos, resultam em queimaduras de segundo grau24.


Ao analisar o agente etiológico, destacam-se as queimaduras por escaldaduras. Um estudo apontou os líquidos superaquecidos como a principal causa de queimaduras em crianças, destacando-se o café quente com maior prevalência, seguido da água quente25. Os acidentes com líquidos superaquecidos ocorrem pelo trânsito de crianças na cozinha e nas proximidades dos fogões. As queimaduras epidérmicas podem ocorrer dentro de 60 segundos de exposição à água com temperatura acima de 53ºC ou dentro de um segundo se a temperatura da água estiver acima de 70ºC26.


As queimaduras por líquidos inflamáveis também apresentaram alta prevalência nesta pesquisa. Um estudo mostrou a distribuição dos pacientes que sofreram queimaduras por álcool líquido durante a pandemia da COVID-19 em relação ao tipo de acidente, e as queimaduras durante o cozimento de alimentos foram responsáveis pelo grande número de queimaduras por álcool líquido (33,3%)17. Durante o isolamento social, houve aumento da incidência de queimaduras associadas ao uso do álcool, substância amplamente utilizada para a higienização das mãos, das superfícies ou dos objetos vindos da rua27.


Tal achado também pode estar relacionado ao aumento do preço do gás de cozinha durante a pandemia da COVID-19. Em 2021, o gás de botijão subiu 36,99% no ano, acumulando 48,76% de aumento desde junho de 202028. O resultado são famílias de baixa renda que utilizam outros meios como o álcool e a lenha em substituição ao gás de cozinha para preparar refeições. Especialistas alertaram para a necessidade de redobrar os cuidados com o uso do álcool 70% no domicílio e ressaltaram que as chamas são invisíveis após a combustão do álcool em gel, o que leva a vítima a perceber a queimadura somente quando a mesma já está acontecendo27.


As áreas corpóreas mais acometidas neste estudo são os membros superiores e inferiores. O local de ocorrência pode estar relacionado com a posição da vítima em relação à fonte das chamas. As crianças em contato com utensílios domésticos quentes ou líquido aquecido justificam as queimaduras de membros superiores, principalmente as mãos, colocadas sobre o objeto por curiosidade. Em seguida, estão os membros inferiores, devido ao fato de que as crianças menores costumam sentar-se no chão com fósforo e acendedores, o que pode, facilmente, queimar seus membros inferiores29.


Uma justificativa para a grande ocorrência de acidentes no domicílio é o tempo passado pelas crianças nesse local com vários fatores intrínsecos, como as relações interpessoais e sociais do domicílio e as questões de infraestrutura e institucionais. Os principais locais que levam à hospitalização de crianças são o ambiente domiciliar, seguido das vias públicas e do trânsito30.


Segundo as notícias deste estudo, situações de vulnerabilidade social podem contribuir para o aumento de acidentes domésticos. O conceito de vulnerabilidade denota a multideterminação de suas origens, não estritamente dependente da falta ou da instabilidade do acesso à renda, mas também da fragilidade dos vínculos afetivos e do acesso desigual a bens e serviços públicos31. Essas vulnerabilidades podem ser divididas em: intrapessoais, relacionadas à faixa etária, ao sexo e ao comportamento; relações interpessoais, relacionadas ao cuidado familiar e ao ambiente domiciliar; fatores institucionais, relacionados às comunidades e às escolas; e fatores culturais, relacionados à sociedade32.


Diante da pandemia da COVID-19, o grande número de queimaduras durante o preparo de alimentos também pode estar relacionado à crise socioeconômica, pois o aumento do preço do gás de cozinha e o desemprego levaram a população a buscar alternativas para o cozimento de alimentos, aumentando o número de queimaduras causadas por líquidos inflamáveis, incluindo o álcool17.


Também foram relatados casos de violência. Dados divulgados na mídia por organizações sociais e instituições não governamentais mostraram aumento da violência contra crianças e adolescentes durante a pandemia da COVID-19, como 7,4% no Distrito Federal, 8,5% no Paraná, 32% em Pernambuco e 73% no Rio Grande do Sul33.


Segundo o Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS), em 2017, foram registrados 126.230 casos de violência contra crianças e adolescentes até 19 anos (42% do total de casos notificados naquele ano). Além disso, 21.559 mortes por causas externas, acidentes e violência até 19 anos mostraram que muitos não sobreviveram aos maus-tratos. Do total de casos, um quarto morreu antes dos dez anos e mais de 10% tinham até quatro anos33.


Estima-se que 18 mil crianças/adolescentes são espancadas todos os dias no Brasil e apenas um em cada 20 casos de violência contra crianças e/ou adolescentes é relatado. Ainda assim, dos 10% das crianças que chegam a serviços de emergência e sem ajuda adequada, 5% morrem nas mãos do agressor e 35% sofrem maus-tratos novamente34.


Na maioria dos casos, identificou-se que o agressor era familiar da criança. Evidencia-se que a violência intrafamiliar não é um evento exclusivo das classes menos favorecidas, podendo ocorrer e atingir famílias de todas as classes sociais, independentemente de raça, religião ou nível de instrução. Os eventos de violência, no entanto, tornam-se mais evidentes nas classes menos favorecidas35.


Constituem fatores de risco para a violência contra a criança, a pobreza, o desemprego, a baixa escolaridade, a falta de planejamento familiar, entre outros. No entanto, o distanciamento social somado à exposição a fatores estressores pode causar maior ocorrência do ato de violência doméstica contra crianças/adolescentes35.


Assim, crianças/adolescentes ficaram expostos à ocorrência de injúrias no período de isolamento social. Os dados que a mídia brasileira fornece sobre os casos de queimaduras em crianças podem contribuir para a proteção desses menores, com informações e medidas preventivas para a diminuição dos casos.


Percebe-se que a maioria das notícias possuía caráter preventivo e educativo a fim de conscientizar a população sobre a prevenção de queimaduras e alertar para os perigos dos acidentes domésticos. O Dia Nacional de Luta Contra Queimaduras, em 6 de junho, foi instituído pela Lei nº 12.026/200936 com a finalidade de divulgar medidas preventivas e conscientizar a população. A campanha "Junho Laranja", realizada pela Sociedade Brasileira de Queimaduras (SBQ), teve como tema, no último ano, "Álcool e fogo: mantenha distanciamento". A escolha do tema deve-se ao aumento significativo de queimaduras durante o período de isolamento social relacionado ao uso de álcool37.


A mídia digital brasileira possui um papel relevante na divulgação de informações importantes para a população, as autoridades e os legisladores devido à possibilidade de abordar questões sobre a temática e alertar para os perigos que causam as queimaduras. A maioria das lesões não intencionais pode ser evitada desde que os responsáveis tomem providências antes do evento. Portanto, a melhor forma de garantir um ambiente saudável e seguro para as crianças é a orientação e a conscientização dos pais/cuidadores27.


Os documentos utilizados em pesquisas constituem uma fonte de dados rica de informações, o que permite ao pesquisador ampliar a compreensão de objetos que requerem contextualização sociocultural e histórica38. Uma análise qualitativa desses documentos sobre as queimaduras na infância oferece uma perspectiva aprofundada sobre o tema, destacando áreas onde a mídia pode melhorar sua abordagem. Ademais, foi possível visualizar lacunas existentes na literatura sobre a temática utilizando a abordagem metodológica do presente estudo.


Os resultados mostraram que as queimaduras necessitam de mais campanhas educativas para a prevenção de acidentes visando à diminuição de óbitos e sequelas para as crianças após os eventos. Além disso, revelam a necessidade de políticas públicas de proteção socioeconômica da criança, como, por exemplo, melhores condições de moradia e acesso seguro a bens-materiais e ambientais protetores que previnam acidentes envolvendo queimaduras.


 


CONSIDERAÇÕES FINAIS


As matérias mostraram grande número de casos de queimaduras durante a pandemia da COVID-19 relacionadas ao distanciamento social, à supervisão inadequada dos cuidadores, ao uso do álcool como medida de prevenção contra o Coronavírus e como item para cozinhar alimentos, devido a mudanças na conjuntura socioeconômica. Também foram relatados casos de violência. Pode-se observar que a mídia brasileira, ao divulgar os casos de crianças que sofreram queimaduras, em sua maioria, o fez de forma descritiva, informativa e preventiva.


Este estudo apresentou algumas limitações, destacando-se a ferramenta de busca utilizada para fazer pesquisas (Google®) e a influência de algoritmos, o que pode ter limitado o acesso amplo a outras notícias. Por outro lado, o uso de diferentes computadores e de notebook pode ter diminuído essa influência e aumentado o acesso a novas reportagens. Ainda, a qualidade e a confiabilidade das informações transmitidas pela mídia digital dependem de profissionais de comunicação, o que vai além do escopo que este trabalho pode avaliar.


Foi possível identificar a falta de estrutura física com capacidade de atendimento hospitalar, para o atendimento dos queimados, com grandes disparidades regionais. Os profissionais de saúde e os especialistas devem adotar intervenções preventivas para modificar o resultado encontrado. A mídia digital brasileira tem grande impacto social ao divulgar casos de crianças que sofreram queimaduras, que servem de alerta para a comunidade/pais e garantem ações mais seguras voltadas para a prevenção de graves acidentes.


 


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Recebido em 16 de Setembro de 2023.
Aceito em 25 de Maio de 2024.

Local de realização do trabalho: Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Uberaba, MG, Brasil.

Conflito de interesses: Os autores declaram não haver.


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