Nos cursos de atendimento inicial ao trauma é ensinado o "ABC" das prioridades, que correspondem, respectivamente, a airway, breathing e circulation, adaptados para o português como via aérea, boa respiraçao e circulaçao. No paciente com queimaduras nao é diferente, o "A" é a primeira prioridade, porque sem o "A", nao adianta se preocupar com o "B" e o "C".
Ao atender vítimas de queimaduras deve-se ter um cuidado especial ao avaliar a via aérea e verificar a necessidade de intubaçao1. Nos casos em que há inalaçao de fumaça, gases tóxicos ou mesmo ar aquecido, a indicaçao é quase absoluta. É importante lembrar que, se o paciente apresenta edema "externo", ele deve apresentar também edema "interno", que comprometerá as vias aéreas. Em quanto tempo e em que grau a via aérea torna-se edemaciada após uma queimadura? A resposta é difícil de responder com precisao. Por esse motivo, no curso de normatizaçao de atendimento ao queimado, dizemos que é sempre possível retirar a cânula, mas nem sempre é possível introduzi-la. Se a oportunidade de intubaçao endotraqueal é perdida, podem-se utilizar métodos invasivos como a cricotireoidostomia, porém o procedimento pode ser difícil e apresenta morbidade significativa. Existe praticamente um consenso de que na dúvida deve-se intubar. Porém, nem todos os pacientes que apresentam comprometimento da via aérea necessitam obrigatoriamente de intubaçao. Um paciente alerta e orientado, sem dispneia e sem lesoes aparentes da via aérea nao necessita de intubaçao imediata.
Apesar do ensino tradicional de que o manejo da via aérea deve ser agressivo, médicos que trabalham no resgate ou nos serviços de emergência têm pouco treinamento nesse quesito quando se refere a pacientes com queimaduras. Entretanto, o manejo inicial desses pacientes é realizado na grande maioria das vezes por esses profissionais nao especializados em queimaduras. Provavelmente por esse motivo temos observado que alguns pacientes sao admitidos nos CTQs com condutas inadequadas em relaçao à via aérea, seja pela falta ou pelo excesso no tocante à intubaçao endotraqueal. Nao temos, em nosso meio, estudos sobre o tema. Esse é um aspecto que precisa ser melhor estudado, assim como a normatizaçao do atendimento em relaçao à via aérea que também precisa ser aprimorada.
Um estudo da Universidade do Texas, nos EUA, sobre o manejo da via aérea realizado anteriormente à admissao do paciente no CTQ revela dados interessantes2. Trata-se de um trabalho retrospectivo com os dados de pacientes previamente intubados à admissao no CTQ. De 1982 a 2005, 11.143 pacientes foram admitidos, destes 11,4% foram intubados antes da admissao. Desse grupo, 26,3% apresentavam suspeita de lesao inalatória, o que foi confirmado por broncoscopia e acompanhamento clínico em 88,6% desse subgrupo. A mortalidade dos pacientes que chegaram intubados foi de 30,8% e esse grupo foi excluído do restante da análise. Nos 879 pacientes que sobreviveram, os motivos relatados para indicar a intubaçao foram edema da via aérea em 34,1%, profilaxia em 27,9% e necessidade de ventilaçao e oxigenaçao em 13,2%. Desse grupo de pacientes, 16,3% vieram diretamente do acidente e o restante veio de outro hospital. Dos sobreviventes que chegaram intubados, 11,9% foram extubados na admissao, 21,3% foram extubados no dia seguinte à admissao e 8,2% foram extubados no segundo dia após admissao. Nenhum dos pacientes extubados nos primeiros 2 dias após a internaçao (41,4%) foi reintubado. Os autores concluem que a indicaçao de intubaçao inicial pode variar, mas que há necessidade de melhorar os conhecimentos dos profissionais que fazem o atendimento inicial das queimaduras para reduzir a intubaçao desnecessária desses pacientes. Como já comentado anteriormente, nos parece que também em nosso meio é necessário aprimorar o atendimento inicial do paciente queimado, principalmente no que se refere à via aérea. Nao temos estudos e publicaçoes nacionais que nos permitam fazer convictamente essa afirmaçao e, assim, entendo que deveríamos nos dedicar a esse assunto e promover estudos e análises que nos permitam normatizar e habilitar melhor os profissionais que fazem o atendimento inicial às vítimas das queimaduras.
Wandir Schiozer
Editor
REFERENCIAS
1. Lecky F, Bryden D, Little R, Tong N, Moulton C. Emergency intubation for acutely ill and injured patients. Cochrane Database Syst Rev. 2008;(2):CD001429.
2. Eastman AL, Arnoldo BA, Hunt JL, Purdue GF. Pre-burn center management of the burned airway: do we know enough? J Burn Care Res. 2010;31(5):701-5.