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Editorial

O caminho da formação médica na especialidade de queimaduras: Desafios, necessidades e perspectivas

The path to medical training in the burns specialty: Challenges, needs, and perspectives

Bruno Barreto Cintra

DOI: 10.5935/2595-170X.20250010

As queimaduras representam um dos desafios mais complexos dentro da medicina, demandando não apenas conhecimento técnico especializado, mas também habilidades multidisciplinares e um preparo voltado para o manejo de situações críticas, recuperação funcional e estética, além da atenção psicossocial dos pacientes. Paradoxalmente, enquanto a incidência de queimaduras graves permanece significativa, observa-se uma procura insuficiente por parte dos médicos em formação para se especializarem nessa área - um fenômeno que é fruto de desafios enfrentados ao longo da formação, da baixa remuneração e de um sistema de saúde que não aloca de maneira ideal os recursos humanos necessários.


Tradicionalmente, o cuidado com pacientes com queimaduras está intrinsecamente associado ao cirurgião plástico1.


De acordo com o Ministério da Educação (MEC) e os dados da Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM)2, o Brasil contava em 2023 com 142 vagas para especialização em cirurgia geral avançada e cirurgia plástica, mas, de forma alarmante, menos de 10% dos residentes dessas áreas escolhem dedicar suas práticas futuras ao cuidado de queimaduras. Essa realidade reflete um desinteresse compreensível, considerando que áreas como cirurgia estética oferecem maior prestígio e melhores perspectivas financeiras.


Além disso, os programas de residência médica frequentemente enfrentam limitações, como a escassez de verbas e as altas cargas horárias desses serviços, resultando em menor atratividade para médicos em formação. Isso cria um ciclo vicioso de déficit de profissionais preparados e sobrecarga dos atuantes nos poucos centros de excelência.


A remuneração representa outro obstáculo significativo para a formação de especialistas em queimaduras. Embora seja uma área que exige alto grau de responsabilidade e conhecimento técnico, dados divulgados pelo Conselho Federal de Medicina3 indicam que a renda média inicial para médicos atuando em serviços públicos especializados em queimaduras é de cerca de R$ 12 mil a R$ 15 mil mensais, abaixo do esperado para profissionais com capacitação comparável em outras subespecialidades cirúrgicas, como cirurgia bariátrica ou oncológica.


Além disso, o sistema público de saúde do Brasil, principal empregador para profissionais na área, historicamente carece de incentivos salariais adequados. Em serviços privados, o número de postos diretamente voltados para queimaduras é ainda mais limitado, restringindo as fontes de renda complementar para esses profissionais.


Dados da Sociedade Internacional de Queimaduras4 apontam que:



• Aproximadamente 11 milhões de casos de queimaduras por ano necessitam de atendimento médico no mundo, cerca de 1,5 milhão deles na América Latina.


• No Brasil, segundo o DataSUS, pelo menos 1 milhão de acidentes por queimaduras são registrados anualmente, sendo que 200 mil requerem hospitalização e mais de 2 mil morrem em decorrência de complicações5.


• A mortalidade de pacientes queimados hospitalizados nos centros de referência chega a ser duas vezes maior em regiões onde faltam equipes especializadas, com perdas anuais de R$ 35 milhões com complicações de casos mal manejados.



Esses números reforçam a necessidade urgente de aumentar os investimentos na formação e distribuição de profissionais capacitados, desde o nível técnico até o treinamento avançado.


Para que o cuidado especializado em queimaduras no Brasil alcance um nível desejável, algumas estratégias precisam ser implementadas:


1. Expansão de Programas de Residência Médica Específicos: A criação de programas exclusivos para queimaduras, com currículos voltados para aspectos cirúrgicos avançados, reabilitação e manejo crítico, deve ser fortalecida. Propostas semelhantes já foram implementadas com sucesso em países como Índia e Estados Unidos, promovendo um aumento expressivo no número de especialistas. E necessário ter um entendimento que seria uma residência clínico/cirúrgica. Fato este importante para tentar, inclusive, uma bolsa de maior remuneração, como estímulo.


2. Incentivos Obrigatórios e Benefícios Financeiros: Introdução de bonificações salariais para profissionais que atuam exclusivamente no manejo de queimaduras, especialmente em centros de alta complexidade.


3. Interiorização de Serviços: Expandir o número de unidades de tratamento para queimaduras em regiões carentes, com parcerias entre o setor público e privado.


4. Campanhas Educativas para Médicos Residentes: Sensibilizar os profissionais em formação para a importância da especialidade por meio de eventos, simpósios e exibição do impacto social do trabalho.


5. Apoio à Pesquisa Científica: Fomentar o financiamento de projetos voltados para o estudo de novos protocolos de manejo de queimados, sistemas regenerativos e reconstrução estética avançada.


Apesar de ser uma área vital para a saúde pública e de impacto social elevado, o cuidado de pacientes queimados sofre com a falta de interesse de médicos em formação, somada a limitações específicas relacionadas à infraestrutura de treinamento e remuneração. Para reverter esse cenário, é indispensável que esforços conjuntos entre governo, entidades médicas e instituições de ensino sejam concentrados. Sem um plano sólido e sustentável que valorize o treinamento e a remuneração dos especialistas, o Brasil continuará enfrentando desafios crescentes para tratar uma das condições mais devastadoras e onerosas para o sistema de saúde.


 


REFERÊNCIAS


1. Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP). Relatório Nacional de Atuação em Queimaduras. São Paulo: SBCP; 2023.


2. Brasil. Ministério da Educação. Comissão Nacional de Residência Médica. Relatório Anual de Vagas em Residências Médicas. Brasília: Ministério da Educação; 2023.


3. Conselho Federal de Medicina (CFM). Relatório sobre Distribuição de Médicos Especialistas. Brasília: CFM; 2023 [acesso 1 set 2025]. Disponível em: https://observatorio.cfm.org.br/demografia/


4. ISBI - International Society for Burn Injuries. Global Burn Statistics. League City: ISBI; 2023.


5. Brasil. Ministério da Saúde. DATASUS - Departamento de Informática do SUS. Dados sobre Queimaduras no Brasil, Atualizado em 2023. Brasília: Ministério da Saúde; 2023 [acesso 1 set 2025]. Disponível em: https://datasus.saude.gov.br/informacoes-de-saude-tabnet/


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