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Artigo Original

Itinerário terapêutico de adultos sobreviventes a queimaduras à luz do pensamento complexo de Edgar Morin

Therapeutic itinerary of adult burns survivors in the light of Edgar Morin’s complex thought

Thávine Camilla Silva Baptilani1; Juliana Helena Montezeli2; Andréia Bendine Gastaldi3; Carolina Rodrigues Milhorini4

DOI: 10.5935/2595-170X.20240003

RESUMO

OBJETIVO: Apreender a percepção de adultos sobreviventes a queimaduras sobre seu itinerário terapêutico, desde a ocorrência da injúria até a reabilitação.
MÉTODO: Pesquisa qualitativa ancorada no pensamento complexo de Edgar Morin, desenvolvida no ambulatório do centro de tratamento de queimados de um hospital universitário público do Norte do Paraná, Brasil, com 10 adultos submetidos a pelo menos uma cirurgia reparadora para correção de sequelas decorrentes da injúria inicial. Realizou-se entrevista semiestruturada com gravação em áudio e, após transcrição literal, os dados foram tratados por meio da análise de conteúdo com apoio do software Atlas-ti versão 9.0.
RESULTADOS: Foram identificadas 93 unidades de registro durante o processo de codificação. Após os agrupamentos por similaridade dos mesmos, emergiram quatro categorias ao longo do itinerário terapêutico da clientela em questão: 1) Percepções desde a injúria até a hospitalização no centro especializado em queimaduras; 2) A dor física e os acometimentos emocionais durante o tratamento e internação; 3) Percalços após a alta hospitalar; e 4) Ressignificações, novos enfrentamentos e perspectivas futuras.
CONCLUSÕES: As interações entre os diversos elementos envolvidos no itinerário terapêutico são complexas e não lineares, sendo importante um olhar multifacetado sobre o paciente queimado, considerando-o em todas as suas dimensões (físicas e subjetivas), de modo que a assistência ao longo da trajetória de recuperação possa ser a mais completa e integrada possível.

Palavras-chave: Enfermagem. Queimaduras. Unidades de Queimados. Itinerário Terapêutico.

ABSTRACT

OBJECTIVE: To understand the perception of adult burn survivors about their therapeutic itinerary, from the occurrence of the injury to rehabilitation.
METHODS: Qualitative research anchored in Edgar Morin's complex thought developed in the outpatient clinic of the burn treatment center of a public university hospital in the North of Paraná, Brazil, with 10 adults undergoing at least one reconstructive surgery to correct sequelae resulting from the injury initial. A semi-structured interview was carried out with audio recording and, after literal transcription, the data was processed through content analysis with the support of Atlas-ti software version 9.0.
RESULTS: 93 registration units were identified during the coding process. After grouping them based on their similarity, four categories emerged throughout the therapeutic itinerary of the clientele in question: 1) Perceptions from the injury to hospitalization in the center specializing in burns; 2) Physical pain and emotional distress during treatment and hospitalization; 3) Mishaps after hospital discharge; and 4) Resignifications, new confrontations and future perspectives.
CONCLUSIONS: The interactions between the different elements involved in the therapeutic itinerary are complex and non-linear, and it is important to have a multifaceted look at the burn patient, considering them in all their dimensions (physical and subjective), so that assistance throughout the recovery trajectory can be as complete and integrated as possible.

Keywords: Nursing. Burns. Burn Units. Therapeutic Itinerary.

INTRODUÇÃO


A busca pela reabilitação faz com que o indivíduo trilhe por caminhos a fim de alcançar a resolução dos problemas de saúde. A esse percurso dá-se o nome de itinerário terapêutico (IT), cujas discussões têm buscado enfatizar as subjetividades do sujeito, como aspectos pessoais e socioculturais do processo saúde-doença. Almeja-se tirar o enfoque exclusivo dos aspectos biológicos e gerar mudança na assistência à saúde, que ainda se embasa sobremaneira no modelo biomédico1.


As bases do Sistema Único de Saúde (SUS) trazem que a saúde é um direito de todos e dever do Estado e a atenção deve ser fornecida de forma integral aos indivíduos, não somente no que diz respeito aos cuidados em si, como também em ações para melhor qualidade de vida e garantir a reabilitação de sua saúde2. Assim, o cuidado em saúde é um processo dinâmico e complexo que se desdobra ao longo do tempo, reiterando a importância da discussão do IT percorrido pelos indivíduos3. Dentre os agravos à saúde que originam um IT longo, estão as lesões causadas por queimaduras, que demandam assistência integral e multidisciplinar por extenso período. Elas são definidas como lesões evitáveis que culminam na destruição tecidual e podem ser ocasionadas por trauma elétrico, térmico, químico ou radioativo. No Brasil, entre janeiro de 2010 a dezembro de 2020, com base em dados do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS), foram contabilizadas 281.540 internações por queimaduras, com taxa de mortalidade de 2,89%4.


O tratamento dessa injúria será definido levando em conta o agente causador, profundidade, extensão da superfície corporal queimada, localização, idade, comorbidades e possíveis complicações5, salientando-se que suas implicações perpassam questões meramente físicas, impactando diferentes esferas do ser humano.


Grande parte dos pacientes acometidos por queimaduras apresentam alterações significativas em sua saúde física e mental. Para estes, urge a necessidade de uma assistência voltada não só para o tecnicismo do tratamento, mas também para estratégias que visem restaurar e fortalecer a saúde mental no processo até o total restabelecimento6.


Estudo demonstra que, entre 90 pacientes vítimas de queimaduras, 10% sofreram de depressão maior; 10% de ansiedade; e 7% de transtorno de estresse pós-traumático, uma vez que houve repercussões complexas em relação à fisiopatologia de sua injúria em todo IT percorrido. Estes indivíduos necessitam de um modelo de assistência à saúde em sua totalidade e considerando sua singularidade sob os olhares de uma equipe multidisciplinar voltada à promoção de sua saúde física, social e emocional7.


Diante dessas considerações, nota-se que o tratamento da queimadura é um processo multifacetado cuja compreensão requer distanciamento de pensamentos fragmentários, os quais, mesmo sendo anacrônicos, ainda se encontram arraigados nas práticas assistenciais atuais. Isto porque a trajetória desde a ocorrência da injúria até o restabelecimento de saúde da vítima é hologramática e não linear, não sendo suficientes as considerações advindas de um paradigma reducionista para a sua sustentação epistemológica. Assim, para abordar tal temática no presente artigo, optou-se por pautar as discussões nos operadores do pensamento complexo de Edgar Morin8.


Com base nisso, este estudo alicerçou-se na seguinte questão norteadora: como adultos sobreviventes a queimaduras percebem seu itinerário terapêutico desde a ocorrência da injúria até a reabilitação? Para elucidar tal indagação, traçou-se como OBJETIVO: apreender a percepção de adultos sobreviventes a queimaduras sobre seu itinerário terapêutico, desde a ocorrência da injúria até a reabilitação.


 


MÉTODO


Trata-se de uma pesquisa qualitativa compreensiva ancorada epistemologicamente no pensamento complexo8, sendo o foco no entendimento da intensidade vivencial dos fatos e das relações humanas.


Edgar Morin advoga a respeito de três princípios como operadores principais do pensamento complexo, sendo eles o dialógico, a recursão organizacional e o hologramático8. O princípio dialógico ressalta a importância da ordem e desordem para a complexidade e trata sobre a associação de opiniões complementares, concorrentes e dependentes para a compreensão de um fato. Já o princípio da recursão organizacional traz que os produtos e os efeitos são causa e produto daquilo que os produz. Por fim, o princípio hologramático evidencia o todo e as partes e é o princípio que diz que a parte está no todo e o todo está nas partes8.


Reportando tais considerações epistemológicas para o âmbito do IT da vítima de queimadura, conjectura-se que os operadores da complexidade podem e devem ser aplicados como base teórica em pesquisas que versem sobre tal temática. Isso porque a dinamicidade do seu processo de cuidar desde o trauma até a reabilitação, a multiplicidade das esferas do ser humano acometidas e a necessidade de uma abordagem para além de um entendimento reducionista do indivíduo requerem do sistema de saúde que circunda tal clientela uma atuação complexa, que o atenda em sua totalidade, nas diferentes fases dessa trajetória. Assim, julgou-se pertinente adotar a teoria em questão como alicerce para a edificação do presente estudo.


O local da investigação foi o ambulatório do centro de tratamento de queimados (CTQ) de um hospital escola público no norte do Paraná, Brasil, que, em 2022, contou com 357 internações, sendo 118 de pacientes na faixa etária de zero a 14 anos; cinco entre 15 e 19; 203 entre 20 e 59 anos; e 31 de 60 anos ou mais.


Junto ao ambulatório exclusivo, o setor contava com 10 leitos de internação em enfermaria, seis de terapia intensiva e duas salas cirúrgicas. Além disso, possuía sala de balneoterapia/pronto atendimento, uma câmara de oxigenação hiperbárica monoplace (que comporta apenas um paciente por vez) e recursos humanos organizados conforme as normas legais vigentes.


Para se elencar os participantes, foi consultado o banco de dados de internações do setor referente ao ano de 2022, no qual, através de uma planilha formulada no Google Planilhas, estavam registrados dados de caracterização do paciente, informações sobre seu histórico de saúde, sobre a queimadura em si, sobre a internação e outras.


A partir desta planilha, identificaram-se os pacientes que atenderam aos seguintes critérios de elegibilidade para a investigação: ter 18 anos de idade ou mais; ter sido vítima de queimadura há pelo menos seis meses; ter permanecido internado no CTQ para o tratamento inicial da injúria com posterior acompanhamento ambulatorial no mesmo serviço; e ter sido submetido a pelo menos uma cirurgia reparadora para correção de sequelas decorrentes da injúria inicial.


Devido ao momento pandêmico em que essa pesquisa foi realizada, o CTQ encontrava-se com reduzido número de internações eletivas para realização de cirurgias reparadoras. Diante disso, a obtenção dos dados, feita por entrevistas, deu-se de duas maneiras: 1) presencialmente: este processo ocorreu nas dependências do CTQ, em ambiente privativo, quando os pacientes estavam internados para cirurgias reparadoras ou em retorno ambulatorial, sem interferir nos processos cuidativos ou na dinâmica do trabalho do setor; 2) remotamente: realizou-se contato telefônico com os pacientes elegíveis utilizando-se o número cadastrado no prontuário e procedeu-se o agendamento de entrevista, podendo essa ser realizada por meio de nova chamada telefônica ou em encontro online via plataforma Google Meet, conforme preferência do inquirido. Aqui, estabeleceu-se que, após serem feitas três tentativas de contatos sem sucesso, o indivíduo seria excluído.


Em ambas as modalidades de coleta houve a assinatura pelo participante um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Para as entrevistas remotas ou telefônicas, enviou-se um link de acesso ao TCLE via aplicativo de mensagem para que fosse dado o consentimento pelo indivíduo.


Cada participante foi submetido a apenas uma entrevista semiestruturada individual, audiogravada, com duração mínima de 15 e máxima de 30 minutos. Mesmo nos encontros online gravou-se somente a voz dos entrevistados, sem imagem dos mesmos. O instrumento norteador foi composto por tópicos de caracterização do indivíduo seguidos de sete questões abertas dispostas em quatro etapas do IT: Etapa A – "Da injúria à admissão no serviço de referência"; Etapa B – "O período de internação e a alta hospitalar"; Etapa C – "O acompanhamento ambulatorial e a reabilitação" e Etapa D – "Perspectivas futuras".


As falas foram transcritas por meio de escuta do áudio e digitação manual no Microsoft Word, em versão literal dos depoimentos, mantendo a linguagem própria dos indivíduos, sem considerar pausas, aspectos comportamentais ou corporais demonstrados no ato da entrevista. Os dados foram tratados pela Análise de Conteúdo, compreendendo as etapas de pré-análise, exploração do material e o tratamento dos resultados com as inferências e as interpretações9.


Este processo foi apoiado no software Atlas.ti versão 9. Trata-se de um software alemão desenvolvido por Thomas Muhr, em 1989, que auxilia os pesquisadores na sistematização das etapas preconizadas pela Análise de Conteúdo de Bardin. Ao utilizar esta ferramenta, o pesquisador continua com a missão de categorizar as falas a partir das inferências obtidas nas análises dos dados coletados através do estudo realizado9,10, sendo o Atlas.ti apenas um recurso que busca fortalecer a organização da análise preliminar realizada pelo pesquisador.


Objetivando manter o anonimato dos participantes, os recortes dos depoimentos utilizados para ilustrar a redação das categorias empíricas emersas foram codificados com a letra P (de participante), seguido do número que corresponde à ordem de realização das entrevistas.


Esta investigação é recorte de um projeto maior aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição sob parecer n°. 4.416.099 e CAAE 40087520.7.0000.5231. Foram seguidas as preconizações da Resolução nº. 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde11 e as entrevistas realizadas remotamente seguiram as diretrizes do Ofício Circular CONEP nº. 02/202112.


 


RESULTADOS


O total de internações no CTQ durante o ano de 2022 foi de 357, das quais 125 foram para realização de cirurgias reparadoras. Entretanto, houve pacientes que internaram mais de uma vez para tais procedimentos, gerando repetição nos registros do setor. Assim, após serem desconsideradas tais repetições e de serem aplicados os critérios de inclusão/exclusão do estudo, foram identificados 39 indivíduos elegíveis para participação das entrevistas. Dentre os elegíveis, cinco não aceitaram participar do estudo e outros quatro não responderam após as três tentativas de contato telefônico, perfazendo um total populacional de 30 indivíduos.


Foram entrevistados 10 pacientes, sendo dois presencialmente, pois encontravam-se internados para a realização de procedimentos reparadores, e oito de forma remota. Considerando que a partir da oitava entrevista os inquiridos já não apresentavam mais elementos novos significativos e que os discursos obtidos já continham qualidade suficiente para responder ao objetivo do estudo, interrompeu-se a captação dos dados na décima entrevista.


Dentre os entrevistados, seis eram do sexo feminino e quatro do masculino. Quanto à faixa etária, todos possuíam de 20 a 59 anos, com predomínio do grupo de idade dos 40 aos 44 anos (30%), seguido do grupo entre 45 e 49 anos (20%). Houve, ainda, 10% de participantes em cada grupo etário seguinte: 55 a 59 anos; 35 a 39 anos; 30 a 34 anos; 25 a 29 anos; e 20 a 24 anos. Em relação à escolaridade, 40% dos participantes possuíam ensino médio completo; 30% ensino médio incompleto; 10% ensino superior completo; 10% ensino superior incompleto; e 10% ensino fundamental incompleto.


A análise dos depoimentos organizados no Atlas-ti permitiu a identificação de 93 unidades de registro (UR) durante o processo de codificação. Após os agrupamentos por similaridade das mesmas, emergiram quatro categorias ao longo do IT da clientela em questão: 1) Percepções desde a injúria até a hospitalização no centro especializado em queimaduras (18 UR); 2) A dor física e os acometimentos emocionais durante o tratamento e internação (21 UR); 3) Percalços após a alta hospitalar (30 UR segregadas em três subcategorias); e 4) Ressignificações, novos enfrentamentos e perspectivas futuras (24 UR).


Categoria 1 - Percepções desde a injúria até a hospitalização no centro especializado em queimaduras


Nesta fase inicial do IT, os participantes destacaram sentimentos e acometimentos físicos, como evidenciado no Quadro 1.


 



 


Categoria 2 - A dor física e os acometimentos emocionais durante o tratamento e internação


A segunda categoria traz achados referentes à fase do IT da pessoa queimada que compreende o intervalo da internação inicial na fase aguda após a injúria à alta hospitalar, como descrito no Quadro 2.


 



 


Categoria 3 – Percalços após a alta hospitalar


Nessa categoria, os depoimentos dos participantes revelaram uma série de obstáculos vivenciados ao retornarem para suas casas, os quais encontram-se segregados em três subcategorias retratadas no Quadro 3.


 



 


Categoria 4 – Ressignificações, novos enfrentamentos e perspectivas futuras


Essa quarta categoria retrata a mudança na forma de perceber-se e compreender o mundo ao seu redor, juntamente com os novos desafios, como pode ser conferido no Quadro 4.


 



 


DISCUSSÃO


A primeira categoria revelou importantes sentimentos e acometimentos físicos desde a injúria até a hospitalização no CTQ. Sofrer uma grande queimadura é um evento traumático que pode levar a problemas de saúde mental, como transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), sendo este tipo de injúria considerada uma das mais dolorosas e traumáticas vivências do ser humano. É uma reação psicológica que pode ocorrer após um evento traumático ou ameaçador à vida, como um acidente por queimadura grave. Os pacientes podem ter flashbacks, pesadelos e sentimentos intensos de medo ou ansiedade relacionados ao acidente6.


Reafirma-se, então, que a queimadura é um acometimento para além do físico e que todas as esferas do ser humano estão ligadas, tangenciando os operadores do pensamento complexo. Uma das principais características da complexidade é a noção de que a realidade é composta por sistemas complexos e o entendimento completo de um fenômeno só pode ser alcançado ao considerar suas múltiplas dimensões e as interações entre os diversos elementos envolvidos8.


Nesse contexto, o pensamento complexo possibilita compreender que o estresse pós-traumático não é apenas uma resposta isolada a um único fator, mas uma condição complexa influenciada por uma variedade de elementos, como a convivência com a dor e com os tratamento clínicos propostos; os sentimentos de desespero, ansiedade, incerteza que pairam sob o sujeito; a estigmatização a respeito dos acometimentos físicos e corporais; e os fatores culturais que levarão a diferentes interpretações e percepções da injúria. É importante ressaltar que, em sua grande maioria, estes acontecimentos ocorrem de maneira acidental e inesperada; com interrupção abrupta de suas atividades rotineiras e ocupacionais e consequente mudança na conjuntura de vida6.


Portanto, ao relacionar tal pensamento ao estresse decorrido da queimadura, é necessário considerar os múltiplos fatores que estarão relacionados ao sofrimento emocional dos indivíduos, com consequente impacto (positivo ou negativo) na reabilitação7.


Dando continuidade à trajetória percorrida, os achados da categoria 2 mostram que a fase do IT entre a internação inicial e a alta hospitalar também gerou uma série de sentimentos, preocupações e manifestações físicas nos pacientes queimados.


Algumas questões pontuadas nessa etapa tiveram início anteriormente e permaneceram na vivência do paciente, como a dor, que se mostrou "companheira" nesta caminhada como uma experiência física intensa com grande sofrimento emocional. Pacientes com queimaduras graves podem enfrentar dor aguda ou crônica intensas durante o tratamento, o que pode afetar seu bem-estar emocional. Ademais, internação prolongada, incertezas sobre a recuperação e a possibilidade de complicações podem causar ansiedade e depressão, com preocupações com o futuro, com a reabilitação e com a reintegração na sociedade.


A dor experienciada pelos queimados gera impacto na qualidade de vida e evidencia-se em uma publicação que mais de 50% dos indivíduos estudados apresentavam dor crônica, apesar de já ter decorrido um tempo médio de 11 anos do trauma inicial7.


Fazendo uma aproximação desses dizeres com as bases do pensamento complexo8, podem-se citar os princípios hologramático e da recursividade, uma vez que há a necessidade de se considerar o processo terapêutico como um sistema dinâmico e multidisciplinar, em constante interação em que as fases se influenciam mutuamente, não sendo possível considerá-las apenas separadamente. Assim, o IT de vítimas de queimaduras deve ser visto como um percurso interativo, no qual cada etapa influencia e é influenciada pelas etapas anteriores e posteriores. Isso significa que as decisões terapêuticas devem ser avaliadas continuamente e ajustadas de acordo com as necessidades e circunstâncias individuais, fortalecendo a readaptação física e psicossocial7.


Um estudo realizado em Taiwan em 2020 define cinco estágios no processo de formação de resiliência no paciente queimado, sendo eles: fase do buraco negro, da introspecção, integração, fase prática, e de crescimento; estágios estes que são pontuados como dinâmicos e interativos, convergindo com o pensamento complexo. Essas fases podem ser repetidas ciclicamente com novas incorporações de experiências vividas no decorrer do IT8,13.


É no estágio de buraco negro que o paciente possui a autopercepção de ser uma vítima de queimadura, o que gera o sentimento de perda de segurança e vitimização. Nessa fase a equipe prestadora de cuidados precisa promover relações de carinho, apoio, incentivo e encorajamento junto aos enfermos, para fornecer o sentimento de segurança ao mesmo e promover melhora à recuperação do indivíduo enfermo6,7,13. Acredita-se que todo esse apoio proporcionado pelos profissionais possa, ainda que embrionariamente, amenizar a sensação de solidão mencionada pelos entrevistados.


O ser humano é um ser social e a gregária faz parte de suas necessidades básicas de vida. Durante a internação, os pacientes podem sentir-se isolados socialmente, principalmente devido ao tempo requerido para sua recuperação e da realização de repetidos procedimentos invasivos. Isso pode levar à solidão, à falta de suporte emocional e ao sentimento de estarem separados dos entes queridos6.


Dito isso e em consonância com os resultados desse estudo, os pacientes podem enfrentar medo e ansiedade em relação ao processo de tratamento, às cirurgias, aos enxertos de pele, aos curativos, aos procedimentos de modo geral e às possíveis sequelas corporais. O desconhecido, a incerteza e a necessidade arbitrária de mudar hábitos de vida podem aumentar o estresse, sendo importante ressaltar que esses aspectos emocionais variam de pessoa para pessoa. Cabe ao profissional de saúde envolvido no cuidado garantir o esclarecimento de todas as etapas do tratamento e suas possíveis consequências à vida futura6.


Cada paciente pode lidar com sua internação de maneira diferente e infere-se que o suporte emocional adequado, incluindo o envolvimento de profissionais de saúde mental, pode ser fundamental para ajudá-los a enfrentar essas dificuldades durante o processo de recuperação.


Muitas das adversidades vividas durante o período de internação inicial permanecem no cotidiano da vítima mesmo após a alta hospitalar, como exaram os dados da terceira categoria. Isso porque as queimaduras podem causar mudanças físicas significativas e permanentes na aparência e na funcionalidade do corpo, o que pode afetar a imagem corporal e a autoestima dos pacientes. Eles podem sentir-se envergonhados, deprimidos ou com baixa autoestima devido às cicatrizes visíveis ou à perda de função. Soma-se o fato de que, muitas vezes, o paciente tem sua internação em um centro especializado postergada por diversos fatores e o seu manejo clínico inicial nos serviços de origem influenciam no curso do IT.


Diante disso, é possível conjecturar que, coadunando com o referencial teórico desta investigação, é importante considerar o paciente como um sistema complexo, composto por diferentes dimensões inter-relacionadas8. Isso significa que se deve considerar no IT deste público não apenas os aspectos clínicos, mas também a qualidade de vida futura, o suporte emocional, a reintegração social e os impactos psicossociais da lesão extramuros hospitalares.


As repercussões de uma queimadura não raramente transformam o indivíduo em um portador de condição crônica de saúde. Aqui, destacam-se a dificuldade na realização de tarefas diárias e a necessidade de adaptação à sua nova condição física, seja ela decorrente de sequelas motoras ou de alterações de imagem6,7.


O impacto inicial de uma queimadura é observado diretamente no corpo físico, com lesões na pele, tecidos e órgãos. Porém, seguindo a linha do pensamento complexo, enfatiza-se a importância de considerar a integração dos sistemas biológicos afetados e as interações entre eles, bem como o papel da resiliência e do apoio psicossocial no processo de recuperação8. Além disso, as implicações a longo prazo para a saúde física devem ser levadas em conta, pois as sequelas podem variar desde cicatrizes e deformidades até limitações funcionais permanentes.


Desse modo, as sequelas de uma queimadura também podem ter um impacto significativo na saúde mental do indivíduo. Questões como trauma emocional, ansiedade, depressão e baixa autoestima podem surgir como resultado das mudanças na aparência e das dificuldades de adaptação à nova realidade física, não limitando-se apenas ao período de internação (como discutido na categoria 2), mas podendo avançar por toda a vida.


O estágio de integração da criação da resiliência do paciente queimado é a fase em que o indivíduo faz uma análise dos fatos decorridos até onde ele se encontra e cria um novo eu, com o reconhecimento dos seus sentimentos e da necessidade de uma reestruturação cognitiva, que se interliga com o estágio de prática, no qual o paciente trabalha novas habilidades13. Contribuindo com essas colocações, tem-se que a recuperação de queimaduras graves pode exigir que os indivíduos acometidos dependam de outras pessoas para suas necessidades diárias, como alimentação, higiene pessoal e mobilidade. Essa perda de autonomia pode gerar frustração, tristeza e impotência.


Na ótica moriniana, os seres vivos são seres auto-organizadores, que não param de se autoproduzir e, por isso mesmo, dependem de energia para manter sua autonomia. Destarte, a autonomia é inseparável dessa dependência e, por isso, precisam ser concebidos como seres autoeco-organizadores. A noção de autonomia só pode ser concebida em relação à ideia de dependência, porém não há reciprocidade entre esses dois termos. É esse o pensamento-chave da autonomia: a dependência8.


As sequelas corporais podem, ainda, afetar a forma como o indivíduo é percebido e tratado pela sociedade e sua autopercepção, gerando sentimentos de autodepreciação e baixa autoestima, uma vez que a sociedade atual valoriza e idolatra padrões de beleza inatingíveis14. A estigmatização e discriminação relacionadas à aparência física podem fazer com que estes pacientes evitem interações sociais devido ao medo de rejeição ou julgamento, adicionando uma camada a mais de complexidade ao processo de recuperação e influenciando em sua jornada de aceitação e adaptação. Os aspectos psicológicos vivenciados pelos pacientes sobreviventes de queimaduras são fator de impacto da recuperação destes pacientes, dessa forma, urge a necessidade da realização de mais estudos acerca deste tema14.


Ao se avançar para a fase final do IT dos entrevistados, percebe-se nos dados da categoria 4 relatos que versam sobre o desejo de viver intensamente, ressignificação de certos valores/comportamentos, relação com o trabalho e alguns de desconfortos persistentes durante a reabilitação.


Tendo em vista as conjunturas mencionadas, é possível inferir que as adversidades vividas por esses indivíduos desde a ocorrência da queimadura fomentam avaliações e ponderações sobre a essência da vida somadas ao exercício da autorreflexão com a possibilidade de serem obtidas novas perspectivas de valores, crenças, comportamentos e sentimentos15,16.


Sabe-se que as adversidades enfrentadas por um acometimento da saúde podem ser compreendidas de modo diferente pelos indivíduos. Contudo, sempre podem ocorrer transformações pessoais a partir da experiência traumática16.


Esta possibilidade pode ser legitimada por meio das afirmações da última categoria acerca das mudanças nas peculiaridades dos pacientes e, ainda, vai ao encontro de um estudo que explana que os indivíduos possuem a tendência de uma maior doação à convivência familiar e a outros relacionamentos ao se depararem com ameaças à longevidade, somada ao desejo de expressar sentimentos antes reprimidos ou pouco valorizados. Acredita-se que isso seja em virtude de que as reflexões sobre a existência e a exposição ao sofrimento (seu ou alheio) desencadeiem o reconhecimento da vulnerabilidade e finitude17.


Todavia, os participantes dessa pesquisa também mencionaram a permanência de questões como a vergonha das cicatrizes, o medo do agente da queimadura, o afastamento social, a dor crônica e as limitações físicas, assim como discutido nas categorias anteriores, que podem não ser sanadas por meio de cirurgias reparadoras e que poderão modificar toda sua conjuntura de vida. A forma com a qual o indivíduo irá conviver com estes desconfortos está intimamente ligada a aspectos de apoio socioemocional que irão fortalecer seu grau de resiliência, ressignificando este acontecido e promovendo uma melhor reabilitação destes pacientes16.


Conforme discorrido e exemplificado durante esta discussão, endossa-se que o processo de recuperação e readaptação é individual para cada paciente, e que cada um dispõe de fatores protetores e de risco que poderão repercutir no seu IT e pelo restante de sua vida18. Assim, o IT não é estático e, levando em consideração que o momento em que foi realizada a coleta dos dados deste estudo foi um recorte dessa trajetória, há de se pensar que, talvez, se a investigação fosse repetida a longo prazo com os mesmos indivíduos, algumas dessas situações evidenciadas nas categorias emergentes pudessem ser suplantadas, uma vez que o IT prosseguirá para além do momento da realização da entrevista, mantendo a sua dinamicidade e não linearidade, tão exploradas pelo pensamento complexo8. Portanto, recomendam-se novos estudos acerca das mudanças físicas, sociais e emocionais vivenciadas pelos pacientes vítimas de queimaduras durante outras fases de seu IT, ampliando os achados discutidos e que ora são finalizados.


 


CONCLUSÕES


As interações entre os diversos elementos envolvidos no IT são complexas e não lineares, assim como a discussão acerca do pensamento complexo de Edgar Morin. Desta forma, é importante considerar o contexto específico em que o paciente está inserido, levando em consideração fatores culturais, sociais, emocionais, econômicos e ambientais que podem influenciar em seu IT; assim como questões de dignidade, respeito, autonomia e justiça ao tomar decisões terapêuticas e ao proporcionar apoio ao paciente; a fim de garantir que o tratamento seja realizado de forma humanizada e compassiva.


Distante de sanar as discussões acerca dessa temática, espera-se que este estudo fomente reflexões na equipe multiprofissional que atua com vítimas de queimaduras nas diferentes fases de recuperação/reabilitação para que lancem um olhar multifacetado sobre tal clientela, considerando-a em todas as suas dimensões (físicas e subjetivas), de modo que a assistência ao longo do seu IT possa ser o mais completa e integrada possível.


 


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Recebido em 8 de Novembro de 2023.
Aceito em 11 de Setembro de 2024.

Local de realização do trabalho: Universidade Estadual de Londrina, Departamento de Enfermagem, Londrina, PR, Brasil.

Conflito de interesses: Os autores declaram não haver.


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