1119
Visualizações
Acesso aberto Revisado por pares
Artigo Original

Pessoas com queimaduras: Concepções sobre o trabalho de Enfermagem na perspectiva de pacientes e profissionais

People with burns: Conceptions about nursing work from the perspective of patients and professionals

Gabriela Louise Caldas Koene; Nathalya Candeias Pastore Cunha; Yasmin Neves Soares; Juliana Maria Bello Jastrow; Patricia Correia de Oliveira Saldanha; Italla Maria Pinheiro Bezerra

RESUMO

OBJETIVO: Compreender o cuidado de enfermagem na reabilitação de pacientes queimados a partir da percepção dos enfermeiros e pacientes atendidos em dois centros especializados em queimaduras.
MÉTODO: Trata-se de uma pesquisa do tipo descritiva desenvolvida a partir de abordagem qualitativa, conduzida de acordo com a guideline internacional para pesquisas qualitativas COREQ (Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research - Critérios Consolidados para Relato de Pesquisa Qualitativa, em português), obedecendo aos 32 itens estabelecidos pelo checklist. Foram entrevistados 18 indivíduos, sendo dez profissionais enfermeiros e oito pacientes usuários do centro de tratamento de queimados. A organização de dados se deu a partir da técnica de análise de conteúdo segundo Bardin.
RESULTADOS: Foi evidenciado que a atuação do enfermeiro frente a vítimas de queimaduras compartilha discursos muito semelhantes no que tange à preocupação da prática da assistência de qualidade. Assim, tanto na perspectiva do usuário quanto na perspectiva do enfermeiro, as estratégias do serviço ocorrem de forma satisfatória, como por exemplo a prática do olhar amplo, a responsabilidade para com o paciente e o empenho na assistência técnica de forma correta.
CONCLUSÕES: A assistência de enfermagem frente a vítimas de queimaduras apresenta percepções de relevância positivas tanto pelos profissionais quanto para os pacientes. Em contrapartida, evidenciou-se que as necessidades dos pacientes não são atendidas em sua totalidade.

Palavras-chave: Queimaduras. Enfermagem. Assistência à Saúde. Unidades de Queimados.

ABSTRACT

OBJECTIVE: To understand nursing care in the rehabilitation of burn patients from the perception of nurses and patients treated at two centers specialized in burns.
METHODS: This is a descriptive research developed from a qualitative approach, conducted in accordance with the international guideline for qualitative research COREQ (Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research), following the 32 items established by the checklist. Eighteen individuals were interviewed, ten of whom were nurses and eight patients who used the burn treatment center. The data organization was based on the content analysis technique according to Bardin.
RESULTS: It was evidenced that the nurses role in dealing with burn victims shares very similar discourses regarding the concern with the practice of quality care. Thus, both from the users perspective and from the nurses perspective, the service strategies occur in a satisfactory way, such as the practice of the broad look, responsibility towards the patient and the commitment to technical assistance correctly.
CONCLUSIONS: Nursing care for burn victims has positive perceptions of relevance both by professionals and patients. On the other hand, it was evidenced that the patients’ needs are not fully met.

Keywords: Burns. Nursing. Delivery of Health Care. Burn Units.

INTRODUÇÃO

As lesões causadas por queimaduras são na maioria das vezes dolorosas e, por este fato, a dor é considerada como um sinal tão importante quanto os outros1. Além da dor física, o sobrevivente de trauma térmico apresenta grande impacto emocional, haja vista que as cicatrizes culminam na distorção de sua imagem para sempre. Este é um potencial fator que interfere em sua recuperação, sendo ele complexo de se cuidar2,3.

Estima-se que no Brasil ocorram em torno de 1.000.000 de acidentes com queimaduras por ano. Destes, 100.000 pacientes procurarão atendimento hospitalar e cerca de 2.500 irão falecer direta ou indiretamente de suas lesões. É, portanto, um problema de saúde pública4-6.

A equipe de enfermagem é considerada fundamental no cuidado aos pacientes vítimas de queimaduras, tendo em vista sua aproximação frequente a estes no processo assistencial. Além disso, o prognóstico do quadro álgico de pacientes queimados depende em grande parte da maneira como suas dores física e psicológica são levadas em consideração pelos profissionais que participam do processo de reabilitação, sendo indispensável a real compreensão destas de modo a evitar que uma dor traumática se torne psicologicamente agravada7.

De acordo com a literatura, ainda existem lacunas pertinentes à ação da equipe de enfermagem nos centros de tratamento de queimados: dificuldade no gerenciamento da dor aguda; falta de formação e atualização; equipe totalmente tecnicista; falta de preocupação para identificar os problemas do paciente e solucioná-los; não aplicabilidade dos processos de enfermagem; desgaste físico, mental e emocional oriundos da complicada convivência com o sofrimento alheio; a responsabilidade solicitada e a dificuldade em ser imparcial do profissional. Tudo isso implica em uma assistência desumana e precária7,8.

Conforme apontam os estudos, ainda se percebe a necessidade de se aproximar da equipe de enfermagem para identificar habilidades frente à atuação aos pacientes vítimas de queimaduras. Assim, questiona-se: Qual a percepção de enfermeiros e pacientes acerca do cuidado de enfermagem prestado ao paciente queimado no processo de reabilitação? Desse modo, o objetivo do estudo é compreender o cuidado de enfermagem na reabilitação de pacientes queimados a partir da percepção dos enfermeiros e pacientes atendidos em dois centros especializados em queimaduras.


MÉTODO

Trata-se de uma pesquisa do tipo descritiva desenvolvida a partir de abordagem qualitativa, conduzida de acordo com a guideline internacional para pesquisas qualitativas COREQ (Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research - Critérios Consolidados para Relato de Pesquisa Qualitativa, em português), obedecendo aos 32 itens estabelecidos pelo checklist9.

Este estudo foi desenvolvido em dois hospitais públicos de referência para tratamento de vítimas de queimaduras na Grande Vitória, no estado do Espírito Santo, sendo um voltado para atendimento pediátrico e o outro, para público adulto. Foi realizado por graduandas de enfermagem com experiência em pesquisas científicas, demais características das entrevistadoras não são citadas por não serem consideradas relevantes para o estudo.

Foram incluídos nesta pesquisa os profissionais enfermeiros atuantes nos centros de tratamento de queimados disponíveis para as entrevistas, assim como os pacientes que estavam em processo de reabilitação na internação, maiores de 18 anos e em condições propícias (psicologicamente e fisicamente estáveis) para participarem das entrevistas.

Existe, no Espírito Santo, um total de 13 enfermeiros atuantes nos centros de tratamento de queimados, sendo que três não puderam participar do estudo devido à incompatibilidade de horário com as coletas, totalizando dez entrevistas de profissionais. Outrossim, oito pacientes internados no centro de referência para adultos contribuíram para o estudo.

Para coleta de dados, foi utilizada entrevista direcionada à percepção da assistência, saberes e práticas, facilidades e dificuldades relacionados ao processo da assistência praticada junto às vítimas de queimaduras. Para cada grupo de participantes, deu-se um momento precedente à coleta de dados com o propósito de esclarecer os objetivos da pesquisa e assim solicitar autorização por escrito destes, por meio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, comprovando a participação e assegurando a autonomia dos envolvidos.

As entrevistas foram realizadas pessoalmente, estabelecendo o sigilo, não sendo identificados durante a coleta de dados. Seguindo uma guia de entrevistas específica para a equipe de enfermagem (APÊNDICE A) e outra para os pacientes (APÊNDICE B), não havendo qualquer relação entre pesquisador e entrevistado. As notas de campo foram realizadas durante o encontro.

Não houve devolução das transcrições realizadas aos entrevistados, bem como, os participantes não participaram da verificação dos resultados obtidos.

Procedeu-se à organização dos polos cronológicos conforme a técnica de análise de conteúdo (AC) através de etapas que possibilitaram descrever e interpretar as falas dos sujeito10.

De acordo com Moraes10, a análise do conteúdo deve ser desenvolvida mediante três polos cronológicos que permitem ao investigador a construção de uma estrutura de análise que corresponda às necessidades da investigação e aos objetivos da pesquisa proposta. Os polos cronológicos de análise de conteúdo são descritos conforme Figura 1 abaixo:


Figura 1. Técnica de análise de conteúdo de acordo com Bardin apud Bezerra & Sorpreso11.



Seguindo os passos propostos por Moraes10, na pré-análise o investigador procedeu à transcrição de 18 entrevistas que possibilitou a leitura flutuante necessária para a organização inicial do Corpus (conjunto de documentos que foram expostos à análise) analisado; sendo reafirmados os objetivos do estudo: descrever a percepção quanto à importância da atuação da equipe de enfermagem frente a pacientes vítimas de queimaduras; descrever ações desenvolvidas pela equipe na reabilitação frente a pacientes vítimas de queimaduras; identificar facilidades ou dificuldades da equipe de enfermagem durante a assistência prestada e identificar facilidades ou dificuldades de pacientes durante a assistência recebida.

Assim, os depoimentos coletados nas entrevistas realizadas foram organizados na Tabela 1.




Com base no objetivo do estudo e na leitura flutuante, o investigador predeterminou as categorias temáticas ou analíticas nomeadas como: 1. Percepção da assistência às vítimas de queimaduras; 2. Ações desenvolvidas; 3. Competência e; 4. Facilidades e dificuldades para desenvolvimento de práticas.

Para o desenvolvimento da análise de conteúdo, é orientada a codificação de fragmentos textuais chamados de unidades de registro (UR) e posterior construção das chamadas unidades de contexto (UC) que proporcionam sentido às falas dos sujeitos; para implementação da codificação, na etapa de exploração do material, foram definidas regras para o desenvolvimento sistemático da enumeração e codificação das unidades de registro (UR) por parte do investigador. As regras predeterminadas foram:



1. Definir cores representativas para cada categoria: categoria 1 = VERDE, categoria 2 = AZUL, categoria 3 = AMARELO, categoria 4 = ROXO;

2. Recortar a UR demarcando com a cor da categoria representativa;

3. Utilizar o método de frequência ponderada para determinar a representatividade das categorias nas falas dos sujeitos;

4. Avaliar as UR das categorias utilizando o método de intensidade e direção por meio da escala bipolar; e

5. Construir a UC usando como referência as UR e inferências decorrentes da exploração do material.



A Figura 2 apresenta o fluxograma da construção da pré-análise e estruturação do Corpus para análise de conteúdo.

Figura 2. Fluxograma de pré-análise.

Fase I – Pré-análise

Após toda a fundamentação das regras e de como o investigador iria direcionar a sua análise de conteúdo, iniciou-se a segunda etapa, denominada exploração do material, que foi iniciada com uma nova leitura do CORPUS. Na implementação da leitura do Corpus foram recortadas as UR/categorias utilizando a regra de coloração predeterminada na etapa anterior para todas as falas dos 18 participantes entrevistados.

A aplicação da frequência ponderada possibilitou o correto direcionamento da análise de cada questionamento para as categorias temáticas e o uso da intensidade e direção para as UR referentes às categorias para definir a intensidade das respostas certas e erradas por parte dos sujeitos.

A exploração do material possibilitou a codificação e enumeração das unidades de registro e a construção das unidades de contexto, que é a primeira inferência significativa para a análise da fala dos participantes do estudo e interpretações realizadas pelo investigador.

Na terceira etapa, denominada de tratamento dos resultados, o investigador realizou a revisão das unidades de contexto finalizando a construção das mesmas e organizou as principais evidências levantadas na fase 2 para proceder a uma posterior interpretação dos resultados obtidos com a exploração do material. Nesta etapa, finalizou-se a construção do quadro com as categorias e um resumo das evidências que foram submetidas à interpretação do investigador. Este quadro auxiliou na construção do relatório final e construção dos resultados e discussão final da pesquisa à luz da literatura a respeito da assistência de enfermagem a vítimas de queimaduras.

Aspectos éticos da pesquisa

O projeto desta investigação foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Juazeiro do Norte, via Plataforma Brasil, cumprindo as exigências formais dispostas na Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde/Ministério da Saúde, que dispõe sobre pesquisas envolvendo seres humanos, sendo aprovado pelo parecer 2.296.675. E respeita a Resolução 510/2016 que infere as Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas Envolvendo Seres Humanos em Ciências Humanas e Sociais.


RESULTADOS

Caracterização dos participantes da pesquisa


A entrevista contemplou 18 indivíduos, estes sendo 10 profissionais enfermeiros, constituindo-se nove do sexo feminino, entre a faixa etária de 26 a 57 anos e com média de sete anos de atuação no setor. Ainda fizeram parte desse estudo oito pacientes usuários do centro de tratamento de queimados, sendo cinco do sexo masculino, escolaridade que varia entre Ensino Médio e Fundamental e com faixa etária entre 20 e 59 anos.

Identificação das unidades de registro, unidades de contexto e categorias analíticas

A partir da organização dos dados mediante os depoimentos dos participantes do estudo e de acordo com a técnica de análise de conteúdo segundo Moraes10, foram identificadas as unidades de registro e de contexto que emergiram nas categorias analíticas (Tabela 2).




Assim, as categorias e evidências nesse estudo podem ser apresentadas na Tabela 3 a seguir:




Conforme ilustrado, de acordo com o resultado do estudo foi evidenciado que a atuação do enfermeiro frente a vítimas de queimaduras compartilha discursos muito semelhantes no que tange à preocupação da prática da assistência de qualidade. Assim, tanto na perspectiva do usuário quanto na perspectiva do enfermeiro, as estratégias do serviço ocorrem de forma satisfatória, como por exemplo a prática do olhar amplo, a responsabilidade para com o paciente e o empenho na assistência técnica de forma correta.

Preocupam-se com os procedimentos padrões do hospital, em contrapartida não exploram a autonomia do enfermeiro fora da rotina tecnicista. Além das facilidades do serviço, que são a prática assistencial rotineira e o trabalho em equipe, dificuldades foram apontadas, tais como: falta de conhecimento, gestão do setor, desgaste emocional, tratamento da dor e morte.


DISCUSSÃO

O sobrevivente do trauma térmico apresenta, além da dor física, grande impacto emocional, haja vista que as cicatrizes culminam na distorção de sua imagem para sempre, sendo um potencial fator que interfere em sua recuperação2. É extremamente complexo de se cuidar. A prestação da assistência deve ser especializada e humanizada, uma vez que as dores são contínuas e o tempo de internação é longo3. Por se tratar de um setor crítico, o centro de tratamento de queimados vive uma rotina em que o limiar entre a vida e a morte se torna tênue12.

O trabalho da enfermagem é considerado fundamental na reabilitação dos pacientes vítimas de queimaduras, principalmente pela proximidade no processo assistencial. Além disso, a dor nesses pacientes é um sinal tão importante quanto os outros, sendo classificada como quinto sinal vital7.

Segundo Silva & Taveira13, a hospitalização do queimado implica para ele os sentimentos de impotência e medo. Os procedimentos de terapêutica realizados com eles trazem muita dor e incômodo, apesar de serem necessários para reabilitação. Em alguns casos, o autocuidado é totalmente dependente da equipe de enfermagem. As condutas do cuidado são desenvolvidas a partir da gravidade do paciente e de suas necessidades. Tem como objetivos principais a estabilização, convalescença e, por conseguinte, diminuição do tempo de internação.

Mediante o exposto, os profissionais entrevistados apresentam visões que corroboram com os achados dos autores, mostrando-se cientes da responsabilidade que possuem diante de um paciente crítico e dependente de seus cuidados. Contudo, por se tratar de um setor crítico, o cuidado se torna mais complexo e a dimensão de assimilações com relação ao contexto do paciente, sendo necessário o conhecimento da rotina de trabalho e a razão dos acidentes que geram traumas térmicos.

Assim, ao se aproximar dos profissionais e indagado sobre as ações desenvolvidas pelos enfermeiros, percebeu-se que houve clareza nas informações fornecidas, identificando padrão de ações desde o momento da chegada do paciente até a alta de acordo com o protocolo da instituição de referência. A sistematização da enfermagem e os procedimentos técnicos durante a internação visando a regulação dos pacientes apresentaram-se também nos relatos dos mesmos, assim como o gerenciamento de risco citado integralmente por todos os profissionais entrevistados.

Evidencia-se assim, pelos relatos dos profissionais de enfermagem, que as ações dos serviços prestados são padronizadas de acordo com os protocolos da instituição, conforme o gerenciamento de risco e a instrução normativa supracitados, sendo de extrema importância no processo de tratamento. Além disso, falas dos pacientes coadunam com as declarações dos enfermeiros sobre a complexidade do cuidado em vítimas de queimadura, uma vez que lidam com dor oriunda da queimadura física/emocional acidental ou física/emocional proposital e suas consequências.

Os primórdios significativos da assistência de enfermagem lançados por Florence Nightingale até hoje são discutidos e aprimorados no processo de assistência vigente. Com o passar dos anos, diversos teoristas contribuíram com o enriquecimento do significado de cuidar, destacando-se como exemplo Wanda de Aguiar Horta, que abordou acerca das necessidades humanas básicas e sua aplicação, propiciando o desenvolvimento da sistematização da assistência de enfermagem14.

A sistematização da assistência de enfermagem (SAE) é atividade privativa do profissional enfermeiro, reconhecida, portanto, como método científico para operacionalizar a resolução dos problemas dos pacientes e personalizar o atendimento, uma vez que cada indivíduo precisa ser atendido em suas necessidades. Essa prática embasa e fundamenta as ações do enfermeiro15.

Quando questionado ao que se refere a abordagem junto a família do paciente, pode-se dizer que os profissionais enfermeiros se empenham na tentativa de solucionar a problemática do paciente, entretanto, voltando-se principalmente para a estabilização física. Fazem isso visando os protocolos institucionais e a rotina tecnicista se sobressai, enquanto os pacientes claramente demonstram na mesma intensidade a necessidade de assistência junto às questões psicossociais oriundas ou não do processo de queimadura e que deveriam ser parte do decurso de internação dentro do plano de cuidados.

Os relatos dos profissionais divergem daquilo que é compreendido com relação à assistência integral e humanizada, principalmente na elaboração de diagnósticos de enfermagem, tendo em vista que neste contexto só trabalham de acordo com o gerenciamento de risco da instituição de referência, demonstrando pouco ou quase nenhum interesse em ir além disso, sendo que a confecção e utilização dos mesmos é um processo constituinte da assistência privativa do enfermeiro que norteia a prática das intervenções e prescrições de enfermagem, compreendendo o indivíduo de forma holística e atendendo-o em suas necessidades, sejam elas básicas, psicológicas ou de autorrealização, conforme preconiza a teoria de Wanda Horta.

Um estudo realizado em 2018 teve como objetivo descrever a dinâmica dos planos terapêuticos ocupacionais de um paciente grande queimado com internação hospitalar de longa duração. Verificou-se que esses pacientes se preocupam mais com seus aspectos psicossociais do que nos aspectos físicos e os cuidados relacionados16.

É importante salientar que a assistência prestada pelos enfermeiros abordados, embora desprovida de uma autonomia mais presente dentro de suas próprias práticas, é reconhecida pelos pacientes de forma positiva e satisfatória, e concomitantemente prospectada pelos profissionais em totalidade como relevante e fundamental com esse perfil de usuários, conquanto não terem uma rotina de trabalho que seja de fato consoante à visão ampla de que afirmam ter de possuir frente a um paciente complexo de se cuidar.

Percebe-se, ainda, a lacuna existente no que concerne à assistência junto à família do usuário, que faz parte de seu contexto de vida e necessita de cuidados tanto quanto o paciente, não só direcionados para assistência física, mas também a mental, em função das sequelas irreversíveis do trauma térmico do ente envolvido e de seus cuidados secundários.

A prática do enfermeiro ainda possui enfoque mecanicista do saber tradicional. Ou seja, a técnica ainda prevalece sobre ações que não são menos importantes que esta última, mas que, em conjunto, podem inovar o cuidado e assim dar visibilidade às ações de enfermagem. Isso implica em dizer que o enfermeiro ainda tem o seu papel colocado de forma pouco específica, as competências acabam se tornando confundidas com frequência com o fazer do técnico e do auxiliar de enfermagem17.

As consequências da queimadura podem se agravar em decorrência da estigmatização desses pacientes na reinserção social. As avaliações negativas de outras pessoas diante de uma distorção de imagem permanente são reconhecidas como estigmatizantes pelas vítimas de queimaduras. Estudos apontam que essas avaliações podem ser através de olhares, comentários ou perguntas e até mesmo bullying, evidenciando a evitação, provocação e pressão para que o envolvido mude sua aparência. Os indivíduos, portanto, possuem a tendência de isolamento social, podendo ser esse processo acompanhado de depressão e baixa autoestima18.

É possível exprimir que a falta de estratégias e ações autônomas dos enfermeiros impliquem em uma assistência voltada para técnica e principalmente centrada na reabilitação física do paciente, deixando desvinculados da assistência os cuidados voltados aos aspectos psicossociais que envolvem o paciente e sua família. O empenho no trabalho é existente, entretanto, a assistência seria mais refinada e aprimorada caso houvesse o agir além de protocolos institucionais e mais exploração dos próprios recursos privativos da categoria.

Desde a sua criação, a enfermagem vem sofrendo reformulações, em função das mudanças nas políticas de saúde e modelos assistenciais. Contudo, para almejar uma transformação, faz-se necessário avançar não apenas no preparo de uma graduação diferenciada, mas, acima de tudo, de um profissional crítico, cidadão, preparado para aprender e criar, propor e também construir19.

Segundo Campos & Passos20, os profissionais precisam contribuir para ampliação dos conteúdos concernentes aos processos de queimadura relacionados à atuação do enfermeiro. Isto pode ser feito através de trabalhos científicos, teses ou pesquisas, haja vista que as publicações a respeito são escassas.

Ainda segundo Campos & Passos20, as instituições de formação em enfermagem devem inserir em suas disciplinas conteúdos que contemplem assuntos sobre a assistência de enfermagem às vítimas de queimaduras.

É plausível afirmar frente aos resultados encontrados que a falta do aprofundamento de conhecimentos relacionados à assistência com queimaduras desde a graduação desmotiva o enfermeiro a buscar capacitações, uma vez que frente à falta de conhecimentos, mas já inseridos no ambiente de trabalho, optam unicamente por empenharem-se na rotina técnica, indo de encontro ao que afirmam Campos & Passos20 sobre ser necessário ter habilidade, competência e estar atualizado em relação às novidades do mercado tecnológico.

Esse processo desencadeia uma série de outras lacunas na assistência, como as já discutidas no presente estudo: assistência integral ao paciente e a família e aplicabilidade da sistematização da assistência de enfermagem, corroborando com o que Campos & Passos20 também declararam: a falta de atualização do enfermeiro dificulta a aplicação dos diagnósticos, já que só por meio do embasamento científico se consegue reconhecer as necessidades básicas dos mesmos.

Visando ainda uma melhor compreensão do serviço prestado dentro dos centros de tratamento de queimados estudados, questionou-se a respeito de facilidades e dificuldades para desenvolvimento de práticas da rotina assistencial do enfermeiro. Assim, ao se aproximar dos profissionais, percebeu-se que as pontuações levantadas se assemelhavam entre eles e que as dificuldades sobressaíam em quantidade.

Assim, verificou-se que existe confiança no trabalho da equipe, desde a segurança em realizar uma abordagem de qualidade com o paciente até a obtenção da prática em meio aos profissionais já inseridos. Entretanto, conforme discutido na categoria acerca de competências, observou-se que essa prática isolada não converge com a prestação de assistência de qualidade, uma vez que não há continuação do processo educacional tecnológico voltado para o cuidado inovador e holístico, sendo comprovado pelas evidências do serviço prestado através do destaque para técnicas e protocolos institucionais exclusivamente.

Logo, a falta de conhecimento com que chegam ao setor referente aos cuidados específicos ao perfil de usuários é significante em termos de dificuldades, assim como desafios enfrentados junto à gestão hospitalar. Ocorre que um dos centros de tratamento de queimados contava com estrutura de ponta, moderna e munido de quantidade de pessoal adequada para o serviço; enquanto o outro, apesar de ser chamado de centro de tratamento de queimados, não possuía ao menos uma unidade de tratamento intensiva acoplada, e só contava com a atuação de um único enfermeiro, diarista. Isto é, o serviço no final de semana só existe com a monitoração de técnicos, haja vista que os médicos e enfermeiros plantonistas do hospital não ficam no referido setor, prejudicando a assistência do paciente que precisa ser hospitalizado neste período.

Segundo Viana21, os desafios enfrentados frente à gestão hospitalar se dão principalmente pela falta de recursos financeiros na saúde. No Brasil, mesmo com um bom investimento, ainda há dificuldades em encontrar o profissional que está capacitado para utilizar os recursos de forma correta e com qualidade, gerando de qualquer forma uma assistência precária.

Além da falta de conhecimento, de estrutura e de profissionais qualificados, a dificuldade em termos de jornada de trabalho resultante em desgaste do profissional também foi apontada no que tange à gestão dos serviços. Apesar da grande rotatividade e renovação na área assistencial das instituições de saúde, a área administrativa, ao contrário, segundo estudos, tende a ficar estagnada, gerando acomodação do administrador e falta de mudanças nas rotinas21.

Assim, verifica-se frente aos achados que as dificuldades oriundas da assistência, de modo geral, podem estar associadas à qualificação do profissional, capacitação, falta de recursos financeiros de órgãos responsáveis para investimento estrutural e pessoal, bem como, de uma gestão ainda falha.

Por se tratar de um setor crítico e demandar do profissional postura técnica e mental centradas ao lidar com o próximo, grande parte dos enfermeiros relataram desgaste físico/emocional oriundos do processo de trabalho com vítimas de queimaduras. Sugeriram programas de acompanhamento à saúde do trabalhador, tendo em vista que já conheceram colegas que se esgotaram até se tornarem também enfermos. Podemos afirmar que os aspectos que representam essa dificuldade são o manejo da dor e o enfrentamento da morte acompanhados das dificuldades administrativas do processo de trabalho. É importante ressaltar que o cuidado junto às vítimas de queimaduras é difícil tanto para o paciente quanto para o enfermeiro.

Com o objetivo de auxiliar os profissionais de enfermagem na melhoria da prestação de serviços assistenciais com pacientes vítimas de queimaduras dentro dos parâmetros desejados, ou seja, multidimensional, técnico e ao mesmo tempo humano e holístico, faz-se necessário investir na capacitação permanente, para elaborar e fortalecer estratégias no gerenciamento da dor aguda, crônica ou emocional do paciente e dos próprios profissionais22.

Isto posto, evidencia-se que as dificuldades na prestação de assistência a vítimas de queimaduras ainda se apresentam em maior proporção, ratificando com os estudos que sinalizam as principais lacunas pertinentes à ação da equipe de enfermagem: dificuldade no gerenciamento da dor aguda; falta de formação e atualização; equipe totalmente tecnicista; falta de preocupação para identificar os problemas do paciente e solucioná-los; não aplicabilidade dos processos de enfermagem; desgaste físico, mental e emocional oriundos da complicada convivência com o sofrimento alheio, a responsabilidade solicitada e a dificuldade em ser imparcial do profissional, resultando em uma assistência desumana e precária7,8.

Apesar de apresentarem percepções condizentes acerca da importância da condução de um trabalho íntegro e de qualidade na assistência a pacientes vítimas de queimaduras e serem reconhecidos pela postura ética e responsável pelos pacientes, os enfermeiros atuantes dos centros de tratamento de queimados estudados apresentam pouca autonomia na atuação de suas próprias atividades privativas, resultando em uma assistência com enfoque técnico e desvinculado da abordagem multidimensional requerida frente aos assistidos e suas famílias, que apresentam, além das necessidades físicas, as de dimensões psicossociais. Colige-se que os achados se justificam pela formação dos profissionais concernentes a esse perfil de pacientes, a falta de capacitação e atualização, dificuldade no manejo da dor e desgaste físico e emocional devido à complexidade do trabalho.


CONCLUSÃO

A assistência de enfermagem frente a vítimas de queimadura é sistematizada e com um olhar holístico. Neste presente estudo, os discursos se assemelham quanto à percepção do usuário e do profissional enfermeiro, no que tange à prestação de assistência qualificada. Foi observado que o profissional atinge todas as estratégias de assistência, no entanto, as instituições não corroboram para esse cuidado unificado, por exemplo, não explorando a autonomia desse profissional. Evidencia-se, assim, que as necessidades dos pacientes não são atendidas em sua totalidade, sendo os achados corroborantes com as deficiências indicadas pela literatura.

Mediante isso, frente aos achados, as dificuldades voltadas à assistência são oriundas, de forma geral, da qualificação do profissional, capacitação, falha nos recursos financeiros e gestão. Além disso, por ser um setor que necessita que o profissional tenha uma postura técnica e mental, a maioria dos trabalhadores relataram desgaste físico e emocional. Foi evidenciada uma dificuldade no manejo da dor e dificuldade com enfrentamento da morte, acompanhados de dificuldades administrativas do processo de trabalho, demonstrando que o cuidado prestado a vítimas de queimaduras é difícil tanto para o paciente quanto para o enfermeiro.


REFERÊNCIAS

1. Souza MAO. Avaliação de membranas utilizadas em tratamento de queimaduras [Dissertação]. Barra do Garças: Universidade Federal de Mato Grosso; 2016.

2. Tenório LN. Ação da espuma de poliuretano com camada de silicone, carvão ativado e prata no tratamento de queimados em um hospital de grande porte da cidade do Recife – PE [Dissertação]. Assunção: FICS; 2021.

3. Oussaki FMS. Análise dos internamentos em um centro de referência de assistência ao queimado no Norte do Paraná no ano de 2012 [Dissertação]. Maringá: Universidade Estadual de Maringá; 2014.

4. Lafaiete C. Queimaduras: um problema atemporal e persistente. Portal PEBMED; 2019. Disponível em: https://pebmed.com.br/queimaduras-um-problema-atemporal-e-persistente/

5. Brito AR, Klajman AB, Dolavale GL, Serra MCVF, Wasserten M. Queimadura, trauma comum em crianças. Rio de Janeiro: Sociedade de pediatria do estado do Rio de Janeiro; 2020.

6. Santos FS. Associação Brasileira de Estomaterapia (SOBEST). 6 de junho - dia nacional da luta contra queimaduras. 2022. Disponível em: https://sobest.com.br/6-de-junho-dia-nacional-da-luta-contra-queimaduras/

7. Santana LCB, Soares TC, Soares TC, Ferreira JCSC, Dias RRX, Câmara GB, et al. Assistance conditions in the care of victims of burns: integrative review of the literature. Res Soc Dev. 2019;8(11):e228111461.

8. Rocha WDR, Lourdes CHC, Pereira CS, Diamantino EF. Potencialidades, demandas e fragilidades no atendimento de enfermagem a crianças vítimas de queimaduras: revisão integrativa de literatura. Res Soc Dev. 2021;10(15):e07101522605.

9. Oliveira RV. Práticas de saúde para o cuidado do homem na percepção do enfermeiro e do usuário de um município do Espírito Santo. Programa de pós-graduação em políticas públicas e desenvolvimento local [Dissertação]. Vitória: Escola Superior de Ciências da Santa Casa de Misericórdia de Vitória (EMESCAM); 2018.

10. Moraes SDTA. Método científico e pesquisas em saúde: orientação para prática profissional. J Hum Growth Dev. 2019;29(1):5-9

11. Bezerra IMP, Sorpreso ICE. Conceitos de saúde e movimentos de promoção da saúde em busca da reorientação de práticas. J Hum Growth Dev. 26(1):11-20.

12. Silva MAC. Sentidos do trabalho para técnicos de enfermagem de uma unidade de tratamento de queimados [Dissertação]. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais; 2021.

13. Silva JP, Taveira LM. Enfrentamento vivenciado pela equipe de enfermagem e a assistência ao paciente hospitalizado vítima de queimaduras. Rev Bras Queimaduras. 2019;18(2):128-36.

14. Backes DS, Junior Toson M, Dal Ben LW, Erdmann AL. Contribuições de Florence Nightingale como empreendedora social: de enfermagem moderna à contemporânea. Rev Bras Enferm. 2020;73(Suppl 5):e20200064.

15. Carvalho FS, Barcelos KL. Sistematização da assistência de enfermagem: vivências e desafios de enfermeiros de uma unidade de terapia intensiva adulto. Rev Bras Ciênc Vida. 2017;5(2):1-25.

16. Mendes APH, Cunha LR, Cunha LR. A complexidade dos planos de tratamentos terapêuticos ocupacionais durante a internação do grande queimado. Rev Bras Queimaduras. 2018;17(Supl):1-82.

17. Bertochi G, Nicodem V, Moser AMM. As teorias administrativas e suas influências na enfermagem. An Pesq Exten Unoesc São Miguel do Oeste. 2020;5:e26341.

18. Secundo CO, Silva CCM, Feliszyn RS. Protocolo de cuidados de enfermagem ao paciente queimado na emergência: Revisão integrativa da literatura. Rev Bras Queimaduras. 2019;18(1):39-46.

19. Bitencourt JVOV. Construindo uma proposta de referencial teórico metodológico para o ensino do cuidado/processo de enfermagem em um curso de graduação em enfermagem [Tese]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina; 2017.

20. Campos GRP, Passos MAN. Sentimento da equipe de enfermagem decorrentes do trabalho com crianças em uma unidade de queimados. Rev Bras Queimaduras. 2016;15(1):35-41.

21. Viana VA. Representação social da qualidade de vida no trabalho dos profissionais de enfermagem de um hospital universitário [Dissertação]. Uberlândia: Universidade Federal de Uberlândia; 2018.

22. Rosso CFW, Bezerra ALQ, Ribeiro LCM, Nascimento MSSP, Silva MAS, Almeida NAM, et al. Protocolo de enfermagem na atenção primária à saúde no estado de Goiás. 3ª ed. Goiânia: Conselho Regional de Goiás; 2017.










Escola Superior de Ciências da Santa Casa de Misericórdia de Vitória, Vitória, ES, Brasil

Correspondência:
Nathalya Candeias Pastore Cunha
Escola Superior de Ciências da Santa Casa de Misericórdia de Vitória
Av. Nossa Sra. da Penha, 2190 – Bela Vista
Vitória, ES, Brasil – CEP: 29027-502
E-mail: nathalya.candeias.pastore@gmail.com

Artigo recebido: 8/7/2021
Artigo aceito: 27/10/2022

Local de realização do trabalho: Escola Superior de Ciências da Santa Casa de Misericórdia de Vitória, Vitória, ES, Brasil.

Conflito de interesses: Os autores declaram não haver.







© 2024 Todos os Direitos Reservados