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Artigo Original

Sinais clínicos para diagnóstico diferencial entre queimaduras de espessura parcial e total em crianças

Clinical signs for differential diagnosis between partial and full thickness burns in children

Dara Francisca Baldo1; Rodrigo Feijó2; João Paulo Picasky3; Johny Grechi Camacho4; Felippe Flausino Soares5; Maurício José Pereima6

RESUMO

OBJETIVO: Analisar a acurácia do método clínico no diagnóstico diferencial entre queimadura de espessura parcial e total, correlacionando o diagnóstico inicial das lesões com a confirmação do diagnóstico em até 21 dias.
MÉTODO: Estudo prospectivo, descritivo e longitudinal, baseado na análise de parâmetros diagnósticos (sensibilidade, umidade, retorno de preenchimento capilar e coloração da área) em pacientes pediátricos, internados por queimaduras, no Hospital Joana de Gusmão em Florianópolis, SC. O diagnóstico inicial da profundidade da queimadura foi realizado no momento da internação hospitalar e comparado ao evolutivo em até 21 dias, sendo considerado diagnóstico final de espessura parcial a presença de reepitelização espontânea, e de espessura total na sua ausência, com necessidade de cirurgia para cobertura cutânea.
RESULTADOS: Dos 81 diagnósticos avaliados, 55 (67,9%) corresponderam ao diagnóstico final de queimadura de espessura parcial e 26 (32,1%) ao diagnóstico final de queimadura de espessura total, sendo que a sensibilidade álgica e o retorno capilar foram as duas características mais presentes na queimadura parcial. A acurácia do exame médico baseado na presença ou ausência dos parâmetros na diferenciação entre as espessuras da queimadura foi de 80,24%.
CONCLUSÕES: A presença de perfusão na área queimada foi a variável de maior acerto no diagnóstico de queimadura de espessura parcial, seguida pela presença de sensibilidade álgica. As duas variáveis também apresentaram alta sensibilidade diagnóstica na caracterização da queimadura de espessura parcial.

Palavras-chave: Queimaduras. Diagnóstico. Reepitelização. Pediatria.

ABSTRACT

OBJECTIVE: To analyze the accuracy of the clinical method for differential diagnosis between partial and full-thickness burn, correlating the initial diagnosis of the injuries with its confirmation within 21 days.
METHODS: A prospective longitudinal descriptive study, based on the analysis of diagnostic parameters (sensory sensitivity, humidity, return of hair growth and area coloration) in pediatric patients hospitalized for burn injury at Hospital Joana de Gusmão in Florianópolis, Santa Catarina state. The initial of the depth of the burn was done at the time of hospitalization and compared to the follow up in 21 days, in which the presence of spontaneous reepithelialization was considered final diagnosis of partial thickness burn and, its absence, of full-thickness burn, requiring surgery for skin coverage.
RESULTS: Of the 81 diagnoses evaluated, 55 (67.9%) corresponded to the final diagnosis of partial-thickness burn while 26 (32.1%) to the final diagnosis of full-thickness burn and pain sensitivity as well as venous return were the two most common characteristics in partial-thickness burn. The accuracy of the medical examination based on the presence or absence of the parameters in order to differentiate burn thicknesses was 80.24%.
CONCLUSIONS: The presence of venous return in the burned area was the most accurate variable in the diagnosis of partial thickness burn, followed by the presence of pain sensitivity. Both variables also showed high diagnostic sensitivity in the characterization of partial-thickness burn.

Keywords: Burns. Diagnosis. Re-Epithelialization. Pediatrics.

INTRODUÇÃO

As lesões por queimaduras são um grande problema de saúde, principalmente em países subdesenvolvidos1,2. No Brasil, estima-se que ocorram cerca de 1.000.000 de queimaduras por ano3, sendo que no período de julho de 2019 a julho de 2020 foram registradas 17.657 internações para tratamento de pequenos, médios ou grandes queimados no país, sob financiamento do Sistema Único de Saúde, sendo 3.098 destas nos estados do Sul e 600 em Santa Catarina4.

Destaca-se, entre as vítimas de queimaduras, a faixa etária de até 14 anos2,5, sendo esta a segunda causa mais frequente de acidentes na infância5 e, frequentemente, a causa de lesão mais traumática, acarretando marcantes danos físicos e psicológicos6,7.

Os pacientes que não necessitem de observação constante ou hidratação endovenosa apresentam maiores chances de tratamento ambulatorial, considerando as variáveis como idade, superfície corporal queimada e profundidade da queimadura6,8. Essa forma de tratamento ambulatorial diminui os custos envolvidos na assistência e minimiza a alteração na rotina da criança, só sendo possível graças aos curativos efetivos existentes atualmente9. Por outro lado, retardar o tratamento cirúrgico, quando este é necessário, associa-se a maiores taxas de infecções e maior tempo de internação e, consequentemente, maior custo6,7.

A classificação da profundidade e da espessura da queimadura é variável imprescindível para tratamento adequado e precoce, seja ele ambulatorial ou hospitalar6,8, sendo que o acometimento da área queimada divide as lesões classicamente em dois grupos: as lesões de espessura parcial, quando existe ainda derme viável, e lesões de espessura total, quando há a destruição da derme10.

As lesões incluídas no segundo grupo são frequentemente descritas como esbranquiçadas, indolores, sem retorno do preenchimento capilar e secas6,7, e não apresentam reepitelização espontânea em duas a três semanas, necessitando de enxertia10. Além disso, quanto mais precoce o diagnóstico da profundidade da queimadura e o início da terapia adequada, menor o desenvolvimento de cicatrizes e menor a dor experimentada pelo paciente, sendo, portanto, determinante no prognóstico7.

O grande desafio é que foram poucos os avanços conquistados nessa área, diferentemente dos observados na avaliação da área de superfície queimada por meio de aplicativos para smartphones8 por exemplo, o que faz com que esse ainda seja um diagnóstico essencialmente clínico, avaliador dependente e subjetivo. Apesar de alternativas como o Doppler Laser, capaz de avaliar o fluxo sanguíneo na área afetada, ou a biópsia da lesão, os mesmos são recursos caros, não disponíveis na rotina dos centros de atendimento e com quase nenhum uso prático11.

Portanto, a avaliação clínica continua sendo a mais utilizada para o diagnóstico da espessura da queimadura12 e busca predizer a viabilidade da derme, utilizando para isso parâmetros como coloração, a presença ou não de sensibilidade, de umidade e de retorno do preenchimento capilar à digitopressão11,12.

Assim, o presente trabalho tem por objetivo avaliar a acurácia do diagnóstico clínico diferencial entre queimaduras de espessura parcial e total, além de avaliar os parâmetros preditores para esse diagnóstico, a fim de contribuir para a indicação de um tratamento adequado e precoce.


MÉTODO

Foi realizado um estudo prospectivo, descritivo e longitudinal com pacientes internados por queimaduras no Hospital Infantil Joana de Gusmão, em Florianópolis, SC, no período compreendido entre setembro de 2019 e dezembro de 2020, que atendiam os critérios de área de superfície corporal queimada de até 20% e intervalo livre entre a queimadura e a internação de até 48 horas.

Sessenta e nove pacientes preencheram os critérios e participaram do estudo, com a análise das variáveis: sexo, idade, raça, procedência, agente agressor, substância aplicada antes do atendimento, local de ocorrência da queimadura, local do primeiro atendimento e unidade topográfica atingida. Além dessas variáveis, foram analisadas as características clínicas da queimadura na descrição no momento da internação do paciente. Essas características avaliadas foram a presença ou ausência de sensibilidade, umidade, perfusão à digitopressão e a coloração da área, dividida em rósea ou não rósea. Todos esses parâmetros foram devidamente registrados na evolução médica da admissão e posteriormente coletados para esse estudo.

A sensibilidade e a presença da reperfusão da derme foram avaliadas à digitopressão na área, enquanto a umidade e a coloração foram avaliadas pela simples observação da queimadura.

Os pacientes foram distribuídos em dois grupos a partir do diagnóstico inicial: (1) queimadura de espessura parcial (QEP) e (2) queimadura de espessura total (QET), apesar de que, em 12 pacientes, queimaduras de ambos os graus estivessem presentes, sendo, a partir de então, cada área avaliada individualmente e considerados 81 diagnósticos iniciais e finais inclusos.

Após o diagnóstico inicial, cada paciente foi reavaliado em até 21 dias da internação para que fosse possível constatar a presença ou ausência de reepitelização espontânea, confirmando o diagnóstico definitivo de queimadura de espessura parcial ou total. A necessidade de enxertia foi considerada como padrão ouro para lesões de espessura total e parcial na sua ausência.

Os dados coletados foram inseridos em planilha do Excel, com conferência seriada e individual, e posteriormente submetidos a análise estatística, sendo considerada variável estatisticamente significante quando valor de p≤5, admitindo-se intervalo de confiança de 95%. Utilizou-se o software STATA® 14 para Windows na realização da análise.

Conforme estabelecido na Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, a pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, sendo desenvolvida sobre os preceitos éticos, de sigilo e privacidade aplicáveis ao estudo, e sob número de registro CAAE 15441019.5.0000.5361.


RESULTADOS

Os dados epidemiológicos dos 69 pacientes estão incluídos na Tabela 1.




A Tabela 2 apresenta os dados clínicos de anamnese e exame físico dos pacientes analisados.




A partir da variável segmento corporal acometido, verificou-se que os membros superiores foram os mais acometidos, em 51 (73,91%) dos 69 acidentes, sendo que a mão foi atingida em 15 (21,74%) destes. Já o tronco anterior foi acometido em 38 (55,07%) das vezes, seguido pela face em 34 (49,27%) das vezes e membros inferiores em 26 (37,68%) das ocasiões.

Quanto ao diagnóstico das queimaduras, os parâmetros clínicos de sensibilidade, umidade, retorno capilar e coloração na avaliação inicial e na avaliação são apresentados na Tabela 3.




Dos 81 diagnósticos presentes no estudo, 55 (67,9%) corresponderam ao diagnóstico final de QEP e 26 (32,1%) ao diagnóstico final de QET, necessitando da enxertia, sendo que, no diagnóstico inicial, foram contabilizados 70 (86,42%) diagnósticos de QEP e apenas 11 (13,58%) de QET. Desse modo, 16 queimaduras evoluíram para QET após avaliação inicial e uma foi classificada inicialmente como QET, mas não necessitou de enxertia durante o curso da internação, recebendo o diagnóstico final de QEP.

Quarenta e três (53,09%) dos diagnósticos iniciais corresponderam à QEP com todos os parâmetros presentes à avaliação, sendo que 36 (83,72%) destes tiveram o mesmo grau confirmado no momento da alta e sete (16,28%) tiveram o diagnóstico final de QET, necessitando de enxerto.

Ainda, das 11 lesões classificadas inicialmente como QET, oito (72,72%) delas não possuíam nenhum dos parâmetros (umidade, sensibilidade, retorno do preenchimento capilar e coloração rósea). Essas oito lesões mantiveram o diagnóstico de QET, evoluindo para a necessidade de enxertia. Apenas uma das 11 lesões classificadas no primeiro exame como QET teve o diagnóstico final de QEP.

Os resultados da análise estatística das variáveis (sensibilidade, especificidade, valor preditivo positivo – VPP –, valor preditivo negativo – VPN – e acurácia) estão descritos nas Tabelas 4 e 5.








DISCUSSÃO

Na análise dos dados epidemiológicos foi possível caracterizar o perfil do paciente mais acometido por queimaduras como pertencente ao sexo masculino (65,22%), e à faixa etária de lactentes e pré-escolares, ou seja, menores que 6 anos (85,51%). Estes resultados estão em consonância com estudos epidemiológicos anteriores2,13,14 que caracterizam este perfil na grande maioria dos casos de acidentes que ocorreram no ambiente intradomiciliar (95,06%), mais especificamente na cozinha (84,06%), e com o envolvimento predominante de líquidos aquecidos (76,81%).

Essa categorização ressalta a importância de se incluir a prevenção das queimaduras nas orientações das visitas de rotina da puericultura na prevenção de acidentes domésticos.

Também foi possível caracterizar que a maioria das queimaduras possuíam extensão de até 10%, sendo que os membros superiores foram o segmento corporal mais afetado (73,91%), com significativo envolvimento das mãos (21,74%), demonstrando a característica de derramamento cefalocaudal dos líquidos aquecidos na faixa etária mais acometida11,14.

Apesar do Hospital Infantil Joana de Gusmão não ter sido o responsável pelo maior número de atendimentos primários, a sua Unidade de Queimados é um importante centro de referência para atendimento de queimaduras que necessitam de atenção mais especializada e tratamento intra-hospitalar, sendo que a maioria é admitida em curto intervalo de tempo, dentro das primeiras 24 horas (69,56%).

Na caracterização da extensão da queimadura, o fator da destruição da derme que ocorre na queimadura de espessura total10 faz com que haja a ausência de terminações nociceptivas da dor, além da necrose das camadas superficiais, conferindo o aspecto classicamente esbranquiçado e seco às lesões6,7.

Na análise dos parâmetros, a sensibilidade álgica apresentou uma sensibilidade de 100%, assim como o retorno capilar, significando que as duas variáveis estiveram presentes em todas as queimaduras classificadas inicialmente como QEP. A partir disso, pode-se considerar tais variáveis como bom método de rastreio para queimaduras de maior gravidade, seja QEP ou QET, pois na ausência das duas características o diagnóstico de QEP torna-se improvável, conferindo a ambas um valor preditivo negativo de 100%.

A sensibilidade de todos os parâmetros avaliados, incluindo também a coloração rósea e a presença de umidade, foi superior a 90%, indicando que a caracterização da queimadura parcial como úmida, rosada, sensível e com retorno do preenchimento capilar é relação verdadeira com a prática médica6,7. Por outro lado, apresentaram baixa especificidade (inferior a 40%), o que na prática significa que um grande número de queimaduras de espessura total também podem ser classificadas como parcial na primeira avaliação, tendo por base a presença de tais parâmetros clínicos avaliados, retardando o tratamento definitivo, sendo que 16 queimaduras classificadas inicialmente como QEP evoluíram para QET e necessitaram de enxertia para recuperação.

Se a presença das variáveis analisadas representa baixa especificidade para QEP, a ausência completa de tais variáveis (umidade, sensibilidade, retorno do preenchimento capilar e coloração rósea) caracteriza corretamente uma QET6,7, uma vez que oito das lesões classificadas inicialmente como QET não possuíam nenhum dos parâmetros e a totalidade delas manteve o diagnóstico de QET, evoluindo para a necessidade de enxertia.

Quanto à acurácia dos fatores no diagnóstico de QEP, a presença de retorno venoso expressou o valor mais significativo (80%), demonstrando de fato a sua importância no exame clínico da queimadura associado ao fato de que, a segunda variável, a sensibilidade álgica, é de difícil avaliação na criança12. O parâmetro que, isoladamente, apresentou o menor índice de acerto foi a umidade, não sendo, portanto, o melhor preditor para QEP na sua presença.

Como análise final do estudo em questão, a acurácia encontrada (verdadeiros positivos somados aos verdadeiros negativos após 21 dias, dividido pelo total de casos) foi de 80,24%, ou seja, bem próximo ao valor encontrado em estudo anterior11 e, ainda assim, sem sofrer modificação significativa ao longo do tempo. O valor encontrado também é superior ao registrado pela literatura, que varia entre 60 e 75%15, podendo refletir a boa experiência dos cirurgiões avaliadores do centro em estudo. Essa análise da acurácia dos parâmetros clínicos na diferenciação entre QEP e QET pode significar que poucos avanços foram de fato conquistados nos últimos anos, apesar do avanço da tecnologia e diferentemente do tratamento das queimaduras16, por ser um método ainda essencialmente clínico e avaliador dependente10,11, fazendo deste um campo com possibilidades de aperfeiçoamento.


CONCLUSÕES

A presença de perfusão na área queimada foi a variável de maior acerto no diagnóstico de queimadura de espessura parcial, seguida pela presença de sensibilidade álgica. As duas variáveis também apresentaram alta sensibilidade diagnóstica na caracterização da queimadura de espessura parcial. Por outro lado, esse estudo demonstra que muitas queimaduras de espessura total também podem ser erroneamente classificadas como espessura parcial, quando avalia-se a presença dos parâmetros clínicos observados.


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1. Acadêmica do Curso de Medicina da Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil
2. Hospital Infantil Joana de Gusmão, Serviço de Cirurgia Pediátrica, Florianópolis, SC, Brasil
3. Hospital Infantil Joana de Gusmão, Serviço de Cirurgia Pediátrica, Florianópolis, SC, Brasil
4. Hospital Infantil Joana de Gusmão, Serviço de Cirurgia Pediátrica, Florianópolis, SC, Brasil
5. Hospital Infantil Joana de Gusmão, Serviço de Cirurgia Pediátrica, Florianópolis, SC, Brasil 6. Universidade Federal de Santa Catarina, Departamento de Pediatria, Florianópolis, SC, Brasil

Correspondência:
Maurício José Pereima
Rua Desembargador Pedro Silva 1952/502/2 – Coqueiros
Florianópolis, SC, Brasil – CEP: 88080-720
E-mail: mauricio.pereima@ufsc

Artigo recebido: 29/7/2021
Artigo aceito: 20/7/2022

Local de realização do trabalho: Hospital Infantil Joana de Gusmão, Florianópolis, SC, Brasil.

Conflito de interesses: Os autores declaram não haver.

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