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Artigo Original

Atuação fisioterapêutica e perfil epidemiológico de crianças queimadas admitidas em um centro de referência de queimaduras de um hospital universitário

Physiotherapeutic performance and epidemiological profile of burned children admitted in a burn reference center in a university hospital

Beatriz Bartholo1; Sônia Maria Fabris Luiz2; Fabiane Ferreira Monteiro Saviolli3; Josiane Marques Felcar4

RESUMO

OBJETIVO: Traçar o perfil epidemiológico de crianças queimadas atendidas pelo Centro de Tratamento de Queimados de um hospital universitário e analisar os tratamentos clínico, cirúrgico e a intervenção fisioterapêutica.
MÉTODO: Estudo transversal, retrospectivo, por meio de prontuários de crianças queimadas (0 a 12 anos), de janeiro de 2020 a março de 2021. Foram coletadas informações pessoais, clínicas e referentes ao tratamento e atuação fisioterapêutica. A significância estatística adotada foi 5%.
RESULTADOS: Amostra composta por 54 crianças, 66,7% masculinos, e 55,6% lactentes. Houve prevalência de queimaduras de segundo grau em membros superiores (59,3%) e tronco anterior (57,4%) por meio da escaldadura (64,8%), ocorrida em domicílio (92,6%). A maioria dos pacientes ficou na enfermaria/Centro de Tratamento de Queimados (77,8%) e recebeu alta (98,1%). Tiveram complicações 42,6% das crianças, a mais comum foi infecção. Procedimento cirúrgico mais realizado: desbridamento (57,4%) e todas as crianças fizeram troca de curativos. O número total de sessões de fisioterapia teve mediana 11 [7-21,3]. As condutas respiratórias foram feitas em 46,3% das crianças, destaque para técnicas reexpansivas e desobstrutivas. Já 98,1% realizaram condutas motoras: mobilização passiva e ativa, alongamentos, sedestação, ortostatismo e treino de marcha. Por fim, a fisioterapia promoveu orientações a 92,6% dos responsáveis.
CONCLUSÕES: A população pediátrica mais atingida pelas queimaduras pertencia ao sexo masculino e era lactente. Houve prevalência de queimaduras de segundo grau em membros superiores e tronco anterior por escaldadura na residência. A maioria dos pacientes realizou desbridamento, troca de curativos e teve alta. A fisioterapia aplicou condutas motoras em quase todas as crianças, e respiratórias em metade.

Palavras-chave: Queimaduras. Criança. Modalidades de Fisioterapia. Reabilitação. Epidemiologia Descritiva.

ABSTRACT

OBJECTIVE: To trace the epidemiological profile of burned children treated by the Burn Treatment Center of a university hospital and to analyze the clinical, surgical and physical therapy interventions.
METHODS: Cross-sectional, retrospective study, using medical records of burned children (0 to 12 years old), from January 2020 to March 2021. Personal, clinical, and treatment-related information and physiotherapeutic performance were collected. The adopted statistical significance was 5%.
RESULTS: Sample composed of 54 children, 66.7% male, and 55.6% infants. There was a prevalence of second-degree burns on upper limbs (59.3%) and anterior trunk (57.4%) through scalding (64.8%), which occurred at home (92.6%). Most patients stayed in the ward/Burn Treatment Center (77.8%) and were discharged (98.1%). 42.6% of children had complications, the most common being infection. Most performed surgical procedure: debridement (57.4%) and all children changed dressings. The total number of physiotherapy sessions had a median of 11 [7-21.3]. Respiratory procedures were performed in 46.3% of the children, with emphasis on airway clearance and lung expansion techniques. 98.1% already performed motor conducts: passive and active mobilization, stretching, sedestation, orthostatism and gait training. Finally, physiotherapy provided guidance to 92.6% of those responsible.
CONCLUSIONS: The pediatric population most affected by burns belonged to the male gender and were infants. There was a prevalence of second degree burns in upper limbs and anterior trunk through scalding at home. Most patients underwent debridement, changed dressings and were discharged. Physiotherapy applied motor conducts in almost all children, and respiratory in half.

Keywords: Burns. Child. Physical Therapy Modalities. Rehabilitation. Epidemiology, Descriptive.

INTRODUÇÃO

Queimaduras são lesões traumáticas da pele e seus anexos que podem atingir também tecidos subcutâneos, músculos, tendões e ossos1,2. Segundo a literatura, estes traumas são causados por diferentes agentes, como os de origem térmica (exposição a chamas e líquidos quentes), química (ácidos, soda cáustica e amônia), radioativa (radiação de raio x e substâncias radioativas) ou elétrica1,2.

No Brasil, ocorrem cerca de um milhão de acidentes por queimaduras por ano, e desses, aproximadamente 100.000 pessoas necessitam de atendimento hospitalar e 2.500 vão a óbito3. Estima-se que 50% das vítimas de queimaduras são crianças, tendo a maioria entre 1 e 6 anos de idade, e que esta lesão representa a segunda maior causa de morte nesta população no Brasil4. Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), existem aproximadamente 300.000 novos casos de queimaduras em crianças por ano, responsáveis por alta morbidade e sequelas funcionais1,3.

Este tipo de acidente pode se justificar pelo fato de que na faixa etária de 0 a 6 anos as crianças buscam explorar a si mesmas e o mundo ao seu redor, porém, com a incoordenação tornam-se mais suscetíveis às lesões térmicas. Dados recentes do Ministério da Saúde apontam que 91,6% dos acidentes acontecem no domicílio, e que a causa mais comum é a escaldadura, representando até 85% dos episódios3.

Neste contexto é necessário compreender que as crianças compõem um grupo de pacientes diferenciados, haja vista apresentarem fisiologia e respostas específicas quando comparadas aos adultos. Dessa maneira, é de extrema importância serem avaliadas de maneira correta5; classificando a queimadura quanto à sua profundidade: primeiro, segundo (superficial e profundo), terceiro ou quarto graus, em ordem crescente de gravidade6. Também é muito importante calcular adequadamente a superfície corporal queimada (SCQ)3.

A queimadura produz, muitas vezes, sequelas que não se restringem somente à superfície cutânea, mas também à rigidez articular, contraturas de tecidos moles, comprometimento motor e/ou respiratório e deformidades7,8. Segundo Albuquerque et al. 7, os pacientes recuperam as habilidades da vida diária mais rapidamente quando a reabilitação é determinada no início do tratamento, sendo imprescindível o atendimento fisioterapêutico desde o primeiro dia de internação hospitalar.

No estudo de Santana et al. 2, a maior parte dos pacientes apresentou resultados satisfatórios após o atendimento da fisioterapia, sendo esta responsável por restabelecer a funcionalidade, prevenir sequelas, além de reduzir a dor, edema e contraturas e melhorar a amplitude de movimento (ADM) da criança queimada7,8. Santana et al. 2 também identificou melhora significativa no edema e aumento relevante da ADM após os atendimentos de fisioterapia.

O presente estudo teve como objetivo traçar o perfil epidemiológico de crianças vítimas de queimaduras internadas no Centro de Tratamento de Queimados (CTQ) do Hospital Universitário da Universidade Estadual de Londrina (HU/UEL), e analisar o tratamento clínico, cirúrgico e a intervenção terapêutica da fisioterapia. Além disso, comparar os resultados obtidos entre os sexos. Dessa forma, os dados poderão auxiliar a melhor compreensão das características da criança queimada, facilitando o direcionamento para um tratamento mais especializado, uma vez que a intervenção fisioterapêutica, ao ser realizada precocemente, tem grande importância nesta população.


MÉTODO

Trata-se de um estudo transversal, por meio da análise de prontuários de crianças queimadas, na faixa etária de 0 a 12 anos de idade, que foram hospitalizadas no CTQ do HU/UEL, tanto em Unidade de Terapia Intensiva (UTI) quanto em enfermaria, no ano de 2020 e primeiro trimestre de 2021. O projeto teve aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa do HU/UEL, de acordo com a Resolução do CEPE (Parecer nº 3.047.522).

Foram incluídas no estudo as crianças queimadas internadas atendidas pela fisioterapia pelo menos uma vez durante a internação, e as que possuíam prontuário eletrônico disponível. Foram excluídos os pacientes que permaneceram no serviço por menos de 24 horas e que não foram atendidos pela fisioterapia, em função do reduzido tempo de internação.

As informações dos pacientes foram coletadas por meio de uma ficha de avaliação previamente elaborada. Esta incluía dados pessoais e clínicos, como número de registro do paciente (RGHU), idade, data de nascimento, sexo, procedência, comorbidades prévias, data de internação e de alta, dias de internação, setor de atendimento, uso de ventilação mecânica, evolução e desfecho do quadro.

A ficha de avaliação também continha informações sobre a queimadura (porcentagem de superfície corporal queimada – SCQ, áreas queimadas, grau, agente causal, ambiente e motivo do acidente e procedimentos cirúrgicos realizados); além disso, dados sobre procedimentos não cirúrgicos também foram incluídos.

Para facilitar a análise dos dados, com relação à profundidade das queimaduras, os pacientes que as tinham de diferentes graus foram classificados pelo maior grau de queimadura.

Por fim, o instrumento continha informações referentes à intervenção fisioterapêutica realizada no paciente, como: mobilização no pronto-atendimento com analgesia, número de sessões por dia e total, procedimentos de rotina, diagnóstico cinético funcional, objetivos, condutas motoras, respiratórias e orientações.

Após o preenchimento da ficha de avaliação impressa, os dados foram tabulados no Excel. A análise estatística foi realizada no programa SPSS 27.0. O teste de Shapiro-Wilk foi utilizado para avaliar a normalidade dos dados, como não atingiram os seus pressupostos, foram apresentados em mediana e seus quartis. As variáveis categóricas foram apresentadas em valores absolutos e relativos. Para comparar variáveis numéricas, foi utilizado o teste de Mann-Whitney e para as categóricas utilizou-se o teste de Qui-quadrado com correção de Yates ou exato de Fisher. A significância estatística adotada foi de 5%.


RESULTADOS

A amostra da pesquisa foi constituída por 54 pacientes pediátricos internados devido a queimaduras no período estudado. A maioria era do sexo masculino (66,7%), na faixa etária de lactentes e proveniente de outras cidades do Paraná. Mais dados sobre a caracterização da amostra encontram-se na Tabela 1 na qual as variáveis também estão discriminadas pelo sexo.




Com relação à SQC, a maioria das crianças foi classificada como pequenos queimados, com prevalência de queimadura de segundo grau em relação à profundidade, e a área corporal mais afetada foi membros superiores (MMSS) seguida de tronco anterior. O principal agente causal foi de origem térmica (98,1%), seguido por origem química (1,9%), e não houve queimadura elétrica ou radioativa. O mecanismo de lesão que mais representou as internações por queimadura térmica foi a escaldadura ocorrida em ambiente residencial (Tabela 1).

Dentre os pacientes, 15 (27,8%) apresentavam comorbidades prévias, destas, três (5,6%) eram respiratórias, um (1,9%) neurológica, 12 (22,2%) outras comorbidades e 39 (72,2%) não tinham nenhuma.

Com relação à internação, as crianças permaneceram poucos dias no hospital, resultando assim em uma mediana baixa para esta variável; já o setor que mais admitiu essas crianças foi a enfermaria do CTQ, e poucos pacientes necessitaram de ventilação mecânica (VM) (Tabela 2).




Durante o período estudado, 23 (42,6%) pacientes tiveram complicações, com predomínio do sexo masculino 16 (44,4%) e sete (38,9%) do sexo feminino. Embora 57,4% dos pacientes não tenham apresentado nenhuma complicação, 17 (31,1%) tiveram infecção, 14 (25,9%) complicações cardíacas, 12 (22,2%) respiratórias, quatro (7,4%) neurológicas, um (1,9%) geniturinárias, um (1,9%) parada cardiorrespiratória, oito (14,8%) outras complicações e não houve casos de choque e sepse.

Ao investigar a evolução do quadro, a maior parte dos pacientes pediátricos teve boa cicatrização 41 (75,9%), 10 (18,5%) apresentaram melhora da funcionalidade, três (5,6%) ganho de ADM e somente dois (3,7%) tiveram piora do quadro. Entretanto, na maioria dos prontuários, nem todos os dados sobre evolução do paciente eram registrados, e 10 (18,5%) não tinham nenhum dado sobre a evolução. Ainda nesse contexto, a respeito do desfecho da internação, quase todas as crianças receberam alta hospitalar (Tabela 2).

As crianças queimadas realizaram diversos procedimentos cirúrgicos e não cirúrgicos. Dentre os cirúrgicos, o desbridamento foi o mais comum e, dentre os não cirúrgicos, a troca de curativos foi realizada em todas as crianças. Além disso, em relação aos procedimentos cirúrgicos, apenas uma criança realizou outro tipo de cirurgia (fasciotomia em um dos pés), e 35,2% não realizou nenhuma cirurgia, o que pode ser melhor visualizado na Tabela 3.




Os tipos de curativos mais comuns utilizados durante a internação foram: Rayon - 44 (81,5%), seguido pelo Exufiber - nove (16,7%), Aquacel - três (5,6%), Durafiber - três (5,6%), Mepitel - três (5,6%) e Brown - dois (3,7%). Além desses, também foram aplicados o curativo oclusivo com atadura em 11 (20,4%) crianças, Atrauman + atadura em uma (1,9%), Biatain em uma (1,9%) e placa hidrocoloide em uma (1,9%) (Tabela 3).

Analisando a atuação fisioterapêutica, o número total de sessões realizadas teve mediana 11 [7 - 21,3] e a média do número de sessões por dia foi estatisticamente diferente entre os sexos masculino e feminino. A fisioterapia ainda realizou mobilização sob indução de anestésicos no pronto-atendimento do CTQ em quase metade dos pacientes pediátricos, 26 (48,1%).

Do total de pacientes atendidos pela fisioterapia, em 45 (83,3%) não constava no prontuário o Diagnóstico Cinético Funcional (DCF) elaborado, e das nove (16,7%) crianças que tiveram, três (5,6%) apresentaram algia, sete (13%) diminuição de ADM, uma (1,9%) diminuição da força muscular (FM), uma (1,9%) redução da funcionalidade, três (5,6%) outros DCF e nenhuma possuía alteração na marcha. Os objetivos também foram pouco descritos, pois 49 (90,7%) não constavam no prontuário, e apenas cinco (9,3%) possuíam esse dado, sendo três (5,6%) com objetivo de promover analgesia, três (5,6%) melhorar a ADM, um (1,9%) melhorar a FM, um (1,9%) melhorar a funcionalidade, quatro (7,4%) evitar complicações e três (5,6%) com outros objetivos.

No quesito procedimentos de rotina realizados pelo fisioterapeuta, em 35 (64,8%) dos pacientes eram anotados os sinais vitais, em 48 (88,9%) realizada avaliação respiratória, em quatro (7,4%) reavaliação, e em apenas cinco (9,3%) não havia esses procedimentos descritos durante o atendimento.

As condutas respiratórias foram realizadas em 25 (46,3%) das crianças, com destaque para as técnicas reexpansivas e desobstrutivas (Figura 1). Ainda sobre reabilitação pulmonar, 10 (18,5%) receberam oxigenioterapia, oito (14,8%) através de cânula nasal, duas (3,7%) por máscara de reservatório e quatro (7,4%) por meio do tubo orotraqueal.


Figura 1 – Técnicas de fisioterapia motora e respiratória realizadas em crianças vítimas de queimaduras durante a internação.



Em relação à reabilitação motora, 53 (98,1%) pacientes precisaram realizar, e apenas um (1,9%) não necessitou. Dentre as condutas motoras, as mais utilizadas foram mobilização passiva e ativa, alongamentos, sedestação, ortostatismo e treino de marcha (Figura 1). Ainda sobre a fisioterapia motora, em seis (11,2%) crianças foram realizadas condutas diferenciadas, como confecção de órteses em uma (1,9%), treino de equilíbrio em duas (3,7%), reeducação postural em uma (1,9%) e treino de motricidade fina e grossa em duas (3,7%).

Por fim, durante o atendimento, os fisioterapeutas promoveram orientações para 50 (92,6%) pais ou responsáveis pelos pacientes pediátricos, e somente quatro (7,4%) desses não receberam essas explicações. Tratando-se de orientações para alta, realizadas pela fisioterapia, 43 (79,6%) pacientes foram instruídos sobre cuidados que deveriam tomar em casa, e 11 (20,4%) não.


DISCUSSÃO

As queimaduras representam a segunda causa mais frequente de acidentes na infância, podendo ocasionar morbidades e sequelas funcionais3. Nesse contexto, por tratar-se de eventos evitáveis, torna-se primordial conhecer as causas mais frequentes deste tipo de acidente, o perfil desses pacientes e os tratamentos mais realizados, tanto médico quanto fisioterapêutico, auxiliando dessa maneira o manejo desses casos, desde a prevenção até a reabilitação9.

A população infantil, principalmente menores de cinco anos, é mais vulnerável a acidentes por queimaduras devido sua capacidade física, mental e seu julgamento não serem adequados para reagir convenientemente a fatores de risco presentes no ambiente10, justificando, dessa maneira, a prevalência de lactentes na amostra do atual estudo. Barcellos et al. 3 evidenciaram uma prevalência ainda maior em lactentes (73%). Tais achados demostram a relevância desses acidentes ligados a uma fase relacionada à curiosidade, à descoordenação e ao acesso à cozinha sem supervisão adequada11.

De acordo com a etiologia das lesões, o principal agente causal foi de origem térmica, e o mecanismo de lesão mais comum, a escaldadura (64,8%), seguido por acidente com fogo (25,9%), e quase todos os acidentes ocorreram no ambiente doméstico. Outros estudos encontraram valores parecidos de internações por escaldo: 70,6%10, 71,6%12, 51,4%3 e por fogo variaram entre 38,6%3 e 12,1%12.

Em relação ao ambiente doméstico, vários autores apontam este como o local em que mais acontecem os acidentes do tipo queimaduras, principalmente a cozinha, que oferece grandes riscos. Isto relaciona-se com atitudes de prevenções deficitárias, pois poucos são os pais que limitam o acesso das crianças a esse ambiente, que reconhecem os potenciais perigos e tomam atitudes adequadas13-15. Desse modo, torna-se importante a realização de ações preventivas para este público, como orientações para modificação do ambiente, manter a criança afastada de superfícies quentes, restringir o acesso desta à cozinha14.

O sexo também é um fator importante para ser analisado, já que foi observado na literatura que os meninos são os mais afetados pelos acidentes de queimaduras infantis, o que pode estar relacionado com as diferenças comportamentais de cada sexo, fatores culturais e por realizarem atividades mais arriscadas14. Nesse contexto, a maioria dos pacientes neste estudo era do sexo masculino e provenientes de outras cidades do Paraná, e em outros trabalhos também houve essa prevalência dos acidentes em meninos, como no de Gallegos Torres et al. 10 (55,7%) e no de Barcellos et al. 3, sendo que, neste último, a maioria dos pacientes eram egressos da região metropolitana da cidade em análise (70%), assemelhando-se ao nosso estudo.

Em relação à SCQ, o atual estudo evidenciou baixa porcentagem, 8 [4,5-12], como no trabalho de Valenciano et al. 8, o qual obteve mediana de 8 [4-12,5], o que justifica a semelhança também no quesito tempo de internação. Entretanto, outros estudos que demonstraram uma porcentagem de SQC mais alta, com mediana de 27 [1-95]11 e 12 [1-85]3.

Sabe-se que há associação entre a extensão de SCQ e mortalidade, se esta for maior que 30% em pacientes de 0 a 18 anos é esperado aumento da resposta inflamatória e, consequentemente, mais dias de internação, complicações e mortalidade3. Devido à porcentagem baixa de SQC em nossos pacientes, as complicações desenvolvidas durante as internações ocorreram em menos da metade das crianças, justificando baixíssima taxa de óbito.

Pode-se observar que a queimadura de segundo grau de profundidade foi a mais comum nesta análise, seguida pela de terceiro grau e em relação à parte do corpo mais atingida, os MMSS e tronco anterior foram os mais afetados. Este resultado foi análogo ao estudo de Aragão et al. 12, no qual 59,3% das crianças tiveram predominância do mesmo grau de queimadura e maior acometimento nas mesmas regiões do corpo, e ao de Dassie & Alves13, em que 62,76% das crianças foram internadas por queimaduras de segundo grau.

Nesse âmbito, segundo a literatura, este dado pode ser associado com a posição da criança frente ao agente causador do acidente, pois, por ser curiosa, utiliza as mãos para pegar e explorar objetos; pode puxá-los para si, fazendo com que as áreas mais expostas sejam os membros superiores e o tronco13.

Tendo em vista o grau de profundidade e a SCQ baixa prevalente nos pacientes desta amostra, poucas foram as crianças admitidas na UTI (13%) e as que necessitaram de VM (14,8%). No estudo de Millan et al. 9 o número de pacientes tratados na UTI (16,3%) aproximou-se com o deste estudo. No entanto, o número de crianças que necessitaram de VM foi maior em outras pesquisas, com 68% no trabalho de Balmelli et al. 11 e 20,7% dos pacientes no artigo de Barcellos et al. 3.

Portanto, o presente trabalho demostra perfil epidemiológico semelhante a outros trabalhos desenvolvidos na população pediátrica com queimaduras3-5,12,13.

O prognóstico destas crianças depende principalmente da abordagem inicial e do tratamento instituído, podendo reduzir complicações, cicatrizes e necessidade de futuras cirurgias reconstrutivas3. Nesse sentido, os procedimentos cirúrgicos que auxiliam o processo de reepitelização da pele, como o desbridamento e o enxerto, foram os mais utilizados nos pacientes do presente estudo e de outros autores também, como no de Aragão et al. 12, em que 87,9% realizaram desbridamento, e no de Balmelli et al. 11, no qual o enxerto foi necessário em 74% dos pacientes.

Já os procedimentos não cirúrgicos, como a balneoterapia e a troca de curativo, receberam destaque neste trabalho devido a quase totalidade das crianças terem realizado estes tratamentos, o que também foi comum na maioria dos pacientes de outros estudos de queimadura pediátrica9,11. Entretanto, não foi encontrado outro estudo epidemiológico que abordasse os tipos de curativos mais comuns utilizados durante a internação.

A fisioterapia é de extrema importância na reabilitação do paciente queimado para restabelecer a funcionalidade e diminuir as sequelas físicas e motoras causadas pela lesão2. Segundo Santana et al. 2, foi possível observar ganho de ADM, FM, melhora física, motora e psicológica dos pacientes após o tratamento fisioterapêutico nesta população.

Antes de iniciar a fisioterapia, o terapeuta deve realizar uma avaliação completa no paciente para que, assim, consiga traçar os melhores objetivos para o paciente, uma vez que estes devem estar alicerçados ao estado em que o paciente se encontra16. Os objetivos mais comuns para crianças queimadas são promover analgesia, redução do edema, manter ou melhorar a ADM de movimento, evitar complicações pulmonares, contraturas cicatriciais, promover melhora da funcionalidade e capacidade aeróbica17. Neste contexto, na amostra atual, foram encontrados esses objetivos, porém poucos prontuários continham registro claro dos objetivos. Salienta-se a importância de não somente avaliar, mas também registrar o diagnóstico cinético funcional e os objetivos do tratamento fisioterápico para que fiquem claros e acessíveis tanto para outros profissionais fisioterapeutas como para os demais membros da equipe de saúde.

Em relação às condutas motoras utilizadas no tratamento das crianças queimadas neste estudo, o alongamento, exercício passivo e ativo, posicionamento no leito, sedestação, ortostatismo e deambulação destacaram-se entre as outras. Em outros estudos, nos protocolos e diretrizes apresentados para melhor tratamento em queimados, estas mesmas condutas também receberam destaque, pois auxiliam no ganho de ADM, FM, independência funcional, na prevenção de trombose, contraturas, morbidade e principalmente na redução do tempo de internação hospitalar16,18.

Já o estudo de Santana et al. 2 demonstrou que a capacidade do músculo produzir força depende da ADM, e que houve aumento da ADM e da FM quando comparados os momentos antes e após o tratamento fisioterapêutico. No entanto, os exercícios resistidos foram pouco utilizados nesta amostra, e segundo Prestes et al. 19 e Hundeshagen et al. 20 essa conduta contribui para o aumento de fibras musculares, aumento de resistência contra fadiga, da propriocepção e da coordenação.

A fisioterapia respiratória é importante para melhorar a expansão pulmonar, a mobilidade da caixa torácica, para eliminar secreções e reduzir complicações secundárias17. Neste sentido, tanto nessa pesquisa quanto nas de outros autores, as técnicas desobstrutivas e reexpansivas foram utilizadas em protocolos de exercícios para crianças queimadas16, porém artigos sobre a reabilitação pulmonar em queimados em fase hospitalar são escassos, particularmente em crianças.

Por fim, a orientação dada à família é extremamente relevante, encorajar os pacientes a seguirem com o tratamento correto durante a internação e até mesmo depois que recebem alta do hospital, visando melhor funcionalidade para volta precoce às atividades de vida diária de forma mais independente possível, bem como educar os responsáveis quanto aos cuidados que devem ser tomados em casa20. Desse modo, na atual pesquisa a grande maioria dos pais e responsáveis receberam orientações durante as sessões de fisioterapia e também na alta hospitalar.

As limitações deste estudo foram o reduzido tamanho da amostra devido ao curto período de coleta dos dados, por consequência da pandemia de COVID-19 vivenciada no momento atual. Outra limitação encontrada foi a falta de algumas informações e padronizações nos prontuários eletrônicos da fisioterapia. Como pontos fortes, destacamos o detalhamento de dados coletados referentes tanto à fisioterapia quanto à epidemiologia dos pacientes.

Dessa maneira, um prontuário fisioterapêutico mais completo, organizado e com escrita padronizada facilitaria na continuidade do tratamento e na verificação de possíveis evoluções do paciente, contribuindo com o próprio fisioterapeuta e com outros profissionais que estejam atuando no mesmo caso. Ainda neste contexto, auxiliaria na coleta e análise de futuros estudos sobre a fisioterapia em pacientes queimados.

Por fim, futuras diretrizes sobre exercícios fisioterapêuticos são necessárias para estabelecer melhores intervenções, possível inserção e exclusão de condutas de exercícios e resultados na população de queimados, bem como direcionar intervenções viáveis para atender necessidades de grupos específicos de pacientes, já que estudos com essa abordagem são escassos na literatura.


CONCLUSÃO

A população pediátrica mais atingida pelas queimaduras atendidas pelo CTQ do HU/UEL pertence ao sexo masculino e tem idade entre 0 e 2 anos. O principal mecanismo de lesão foi a escaldadura, que predominantemente ocorreu no ambiente doméstico.

As regiões de MMSS e tronco anterior foram mais atingidas, com prevalência da queimadura de segundo grau. A maioria dos pacientes teve tempo de internação curto com desfecho de alta, e durante o período, os tratamentos cirúrgicos mais usados foram o desbridamento e enxerto, e dentre os não cirúrgicos, a balneoterapia e a troca de curativo.

O levantamento ainda demonstrou que a fisioterapia realizou condutas motoras em quase todas as crianças, com destaque para alongamento, exercício passivo e ativo, posicionamento no leito, sedestação, ortostatismo e deambulação. Condutas respiratórias foram realizadas em metade dos pacientes, utilizando técnicas desobstrutivas e reexpansivas. Entretanto, o DCF e objetivos foram pouco encontrados nos prontuários.

Neste contexto é importante a realização de estudos que auxiliem na caracterização específica de pacientes pediátricos queimados hospitalizados e na análise do atendimento fisioterapêutico, pois contribuem para reabilitações fisioterapêuticas mais adequadas. Além de que, trabalhos com esta temática são escassos na literatura brasileira, tornando-se necessária a elaboração de mais estudos que analisem a atuação da fisioterapia e diretrizes de exercícios fisioterapêuticos para esse público.


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1. Universidade Estadual de Londrina, Fisioterapia, Londrina, PR, Brasil
2. Universidade Estadual de Londrina, Fisioterapia, Londrina, PR, Brasil
3. Universidade Estadual de Londrina, Fisioterapia, Londrina, PR, Brasil
4. Universidade Estadual de Londrina, Fisioterapia; Programa de Pós-Graduação Associado UNOPAR-UEL em Ciências da Reabilitação, Universidade Pitágoras Unopar/Universidade Estadual de Londrina, Ciências da Reabilitação, Londrina, PR, Brasil

Correspondência:
Josiane Marques Felcar
Universidade Estadual de Londrina
Rodovia Celso Garcia Cid PR 445 Km 380 – Campus Universitário
Londrina, PR, Brasil – CEP: 86.057-970
E-mail: josianefelcar@uel.br

Artigo recebido: 4/8/2021
Artigo aceito: 11/8/2022

Local de realização do trabalho: Universidade Estadual de Londrina, Londrina, PR, Brasil

Conflito de interesses: Os autores declaram não haver.

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