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Relato de Caso

Vivenciando o deserto: Relato de caso de um paciente queimado com sede

Experiencing the desert: Case report of a burnt thirsty patient

Renan Passetti Almeron1; Moises Santos2; Aline Korki Arrabal Garcia3; Marilia Ferrari Conchon4; Isadora Pierotti5; Lígia Fahl Fonseca6

RESUMO

OBJETIVO: Apresentar o relato de uma paciente queimada em relação à sede no período pré-operatório imediato e o alívio após a ação do picolé de gelo.
RELATO DE CASO: Obtido por meio de entrevista semiestruturada com a paciente M.S.S., 33 anos, sexo feminino, encaminhada para o Centro de Tratamento de Queimados, com queimadura por combustível em região de membros superiores e tórax, totalizando 24% da área corporal. Até o momento da entrevista, havia sido submetida a oito procedimentos anestésicos, para a realização de cirurgias e balneoterapias. Durante o período de jejum pré-operatório imediato, relatou sede, classificando-a como superior à fome e até mesmo à dor Relatou a aflição de sentir sede e o alívio vivenciado ao receber o manejo da sede.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: A sede foi relatada pela paciente como um desconforto de alta relevância e gerador de angústia, durante o período de jejum pré-operatório imediato. Em sua experiência tratou-se de um sintoma que superou a dor e a fome. Quando aplicado o manejo da sede e ofertado o picolé de gelo, foi possível prover maior conforto e minorar a sede vivenciada.

Palavras-chave: Sede. Queimaduras. Enfermagem Perioperatória. Conforto do Paciente.

ABSTRACT

OBJECTIVE: To present the report of a burned patient in relation to thirst in the immediate preoperative period and the relief after the action of the ice popsicle.
CASE REPORT: It was obtained through a semi-structured interview with the patient M.S.S., 33 years old, female, at the Burnt Treatment Center, due to fuel burn in the upper limbs and chest area, totaling 24% of the body area. Up to the moment of the interview, she had been submitted to eight anesthetic procedures, between surgeries and balneotherapies. During the immediate preoperative fasting period, she reported thirst, classifying it as superior to hunger and even pain. She reported the distress of feeling thirst, and the relief experienced when receiving the management of thirst.
FINAL CONSIDERATIONS: Thirst was reported by the patient as a highly relevant discomfort and anguish generator, during the pre-anesthetic fasting period. In her experience, it was a symptom that overcame pain and hunger. When thirst management was applied and ice popsicles were offered, it was possible to provide greater comfort and alleviate the thirst experienced.

Keywords: Thirst. Burns. Perioperative Nursing. Patient Comfort.

INTRODUÇÃO

Quando o trauma da queimadura se sobrepõe à homeostase do organismo, acarreta desarranjos, levando a um desequilíbrio hidroeletrolítico como a hipovolemia. Essa perda de volume para o interstício gera uma diminuição de 50-70% do volume plasmático1. Visto que a sede é desencadeada com aumento de 1-2% da osmolaridade sérica ou pela redução de 5-8% do volume plasmático2, o paciente queimado apresenta grande chance de experienciar sede intensa.

Além disso, há necessidade de diversos procedimentos anestésicos durante seu período de internação para a realização de cirurgias e balneoterapias, criando um impasse entre a necessidade de realização do jejum no pré-operatório imediato e a manutenção do seu equilíbrio nutricional3.

Isso tende a minar as estratégias para fornecer alimentação correta, pois esses pacientes podem entrar em processo hipercatabólico, oriundo da lesão térmica4. Todos esses fatores culminam em desconfortos, incluindo a sede5. Diante da restrição de ingesta hídrica repetida vezes durante seu período de internação, pelo jejum, foi implantado em um centro de tratamento de queimados (CTQ) o modelo de manejo da sede (MMS) pré-operatória5.

Este modelo, já implantado no pós-operatório imediato (pOI) na sala de recuperação anestésica da mesma instituição do estudo, apresenta resultados satisfatórios aos pacientes. É composto por quatro pilares, sendo eles a identificação da sede, mensuração, avaliação da segurança para o manejo e oferta de estratégia de alívio da sede, durante seu período de jejum do pré-operatório imediato6.

No pilar identificação, a equipe de enfermagem deve ser capaz de identificar os sinais periféricos de sede que o paciente pode apresentar, como boca seca, lábios ressecados, língua e saliva grossa, gosto ruim na boca e vontade de beber água7. Além disso, a equipe deve perguntar ao paciente de forma intencional se ele está sentindo sede5.

Já no segundo pilar, a intensidade da sede deve ser mensurada. Para isso, é utilizada a Escala Verbal Numérica (EVN)8 para o adulto, que varia de zero a dez, sendo zero nada de sede e dez sede intensa. Para a criança, a escala utilizada é a Escala de Faces (EF), que varia de zero a quatro, em que zero é nenhuma sede e quatro sede intensa.

Para o pilar segurança, foram desenvolvidos e validados protocolos que avaliam critérios para saber se o paciente pode receber a estratégia de forma segura. Para o adulto, foi validado o Protocolo de Segurança para o Manejo da Sede (pSMS) que conta com os itens nível de consciência, tosse e deglutição efetivas e ausência de náusea e vômito6. Já para avaliação da criança de 3 a 12 anos é utilizado o Protocolo de Segurança para o Manejo da Sede Pediátrica (pSMSP). Esse protocolo contém os itens do PSMS, acrescidos de movimentação e padrão respiratório9.

O último pilar é a oferta de estratégia de alívio para a sede. Entre essas estratégias estão a goma de mascar mentolada10 ou o picolé de gelo11, associados ou não com o hidratante labial5.

Os desafios para a recuperação física e emocional do paciente queimado são amplamente documentados12. No entanto, não se encontram evidências sobre a sede nesta população. Compreender a perspectiva do paciente queimado em relação à sede irá contribuir para a valorização desse sintoma e elaborar ações para seu cuidado.

Dessa forma, o objetivo desta pesquisa foi apresentar o relato de uma paciente queimada em relação à sede no período do pré-operatório imediato e o alívio após a ação do picolé de gelo.


RELATO DE CASO

Pesquisa do tipo relato de caso13, realizada em um CTQ, referência do sul do Brasil. Esta unidade conta com duas salas cirúrgicas e uma sala utilizada para balneoterapia, no qual o paciente necessita de cuidados no pré-operatório imediato, incluindo o jejum. O setor realiza em média 210 procedimentos mensais.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê Ético de Pesquisa em Envolvendo Seres Humanos da Universidade Estadual de Londrina, CAAE: 13638519.1.0000.5231. Foram assegurados os direitos de autonomia, confidencialidade e privacidade da paciente, que assinou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

O critério de inclusão foi que o paciente tivesse experienciado sede no período do pré-operatório imediato e recebido o MMS.

A coleta ocorreu em janeiro de 2020, por meio de entrevista semiestruturada, gravada e transcrita, realizada na enfermaria do CTQ. Algumas perguntas nortearam a coleta de dados: Quando você estava em jejum aguardando o procedimento, você sentiu sede? Classifique sua sede de zero a dez, sendo zero nada de sede e dez a pior sede que você já sentiu. Quantas horas você permaneceu em jejum neste dia? A equipe explicou o motivo do jejum absoluto? Qual foi a sensação de ter recebido o MMS? Fale-me mais sobre isto.

A entrevista foi transcrita e sua ordenação ocorreu com base na apreensão das verbalizações, sendo posteriormente discutida com a literatura pertinente ao objetivo do estudo.

Trata-se de M.S.S., 33 anos, sexo feminino, residente em um município de pequeno porte. No dia 1 3/0 1 /2020 foi encaminhada para um Hospital Regional de grande porte, transferida de uma unidade de terapia intensiva de uma cidade vizinha para o CTQ. Apresentava queimaduras por gasolina, em região de membros superiores e tórax, classificada com 24% de superfície corporal queimada.

Durante sua internação no CTQ, foi submetida a procedimentos como balneoterapias, cirurgias para desbridamentos e enxertos dermatológicos, totalizando oito procedimentos até o momento da entrevista.

Quando perguntado à paciente sobre os desconfortos experienciados durante o jejum pré-anestésico, ela relatou a sede como superior à fome e até mesmo à dor. Foi pedido que a entrevistada classificasse a sede que experienciou durante o período de jejum do último procedimento a que foi submetida, conforme a EVN8, e ela classificou como dez - sede intensa.

Com relação ao tempo de jejum do pré-operatório imediato para este procedimento, foram totalizadas dez horas de jejum para sólidos e líquidos. No entanto, durante a entrevista, houve relato de períodos ainda mais prolongados, chegando a 15 horas.

Considerando o período extensivo, foi indagado à entrevistada se a equipe de saúde lhe informou sobre a necessidade desta privação. A mesma relatou que os profissionais lhe informaram sobre o risco de broncoaspiração do conteúdo gástrico durante a anestesia.

A paciente contou a experiência angustiante de sentir sua boca seca e lábios rachados a cada período de restrição hídrica, devido aos procedimentos a que precisou ser submetida.

Quando questionada sobre seu sentimento em ter recebido da equipe de enfermagem o MMS, durante o período de jejum, ela se sentiu agradecida por terem olhado com intencionalidade para o sintoma desconfortante da sede que ela estava sentindo.

Além disso, a entrevistada descreveu que se sentiu segura para aceitar uma estratégia de alívio da sede - o picolé de gelo. Isso ocorreu porque a técnica de enfermagem realizou todas as etapas do MMS pré-operatório5. Dentre elas, a aplicação do PSMS6 para avaliar se ela estava segura para receber uma estratégia de alívio5.

A paciente esclareceu que, antes de sua estadia hospitalar, a ingestão de água passava despercebida, mas que agora, após ter vivenciado a angústia da privação hídrica, pôde perceber o quanto a água é essencial para ela, diz ser "a vida retornando".


DISCUSSÃO

Pesquisa realizada com pacientes submetidos a cirurgias eletivas revela que suas experiências com a sede também foram extremamente angustiantes e desencadeadoras de sentimentos associados à loucura e à morte, pela impossibilidade de beber água14. Além de descreverem utilizando figuras de linguagens, que a sensação era de "vivenciar o deserto" ou "estar ingerindo um tubo de cola"15.

O uso de estratégias de alívio da sede ao paciente cirúrgico geral no pré-operatório não faz parte da cultura das instituições de saúde, que convivem com dogmas a respeito da administração de estratégias de alívio da sede nesse período10,15. Mas quando se trata do paciente cirúrgico queimado, essa realidade se agrava ainda mais, devido aos múltiplos procedimentos anestésicos aos quais precisará passar e, consequentemente, todos os fatores que convergem para a sede intensa.

A importância deste relato de caso se dá devido à percepção de quão angustiante foi experienciar um sintoma tão presente na prática clínica do queimado. No entanto, ainda subdiagnosticado, subvalorizado e subtratado em grande parte dos centros de queimados. Outro ponto que acentua o ineditismo da pesquisa foi que a implantação do MMS no pré-operatório é pioneira no cenário do paciente queimado cirúrgico.

A entrevistada referiu se sentir segura para aceitar algo que minorasse sua sede durante o período de jejum. Isso ocorreu pelo fato da técnica de enfermagem ter aplicado os quatro pilares que compõem o MMS e verificado que a paciente estava apta a receber de forma segura uma estratégia de alívio da sede como, por exemplo, o picolé de gelo5.

Como já observado, as vantagens do uso do picolé de gelo para amenizar a sede são muitas11. Isso se deve à presença do frio, que estimula a salivação, umidifica a cavidade oral e reduz a vasopressina. Outra vantagem se dá pela diminuição da sede com um baixo volume e eficácia comprovada6,8,10-15. Além do gelo estar em formato de picolé, permitindo que o paciente esteja no controle do frio em sua boca11.

Considerando essas vantagens, um ensaio clínico randomizado utilizou o picolé de gelo para aliviar a sede de pacientes cirúrgicos no POI. A pesquisa identificou que essa estratégia apresenta eficácia de 37,8% superior à água em temperatura ambiente11. Isso ocorre pela capacidade das substâncias frias e/ou mentoladas de ativarem receptores orofaríngeos relacionados a sede5,10,11.

Ao receber o MMS, a paciente descreveu a experiência de ter "a vida retornando". Aliviar a sede desta paciente só foi possível devido à aplicação de um cuidado baseado em evidência científica, com fácil aplicabilidade clínica, baixo custo, seguro, efetivo, dando autonomia para que a equipe de enfermagem possa tratar a sede de pacientes que se encontram em períodos de restrição hídrica.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

A sede ainda é subdiagnosticada, subtratada e subvalorizada no cenário do paciente queimado, evidenciando a lacuna do conhecimento sobre esta temática. Dessa forma, é possível identificar a importância e o ineditismo proposto por este relato de caso da prática clínica.

Além disso, a entrevistada se sentiu agradecida pela equipe de enfermagem ter olhado com intencionalidade para o seu desconforto, pois o paciente queimado passa por sofrimentos e desconfortos intensos, podendo ser intensificado pela sede não tratada. A água passou a ter novo significado após experienciar tamanha angústia devido a sua privação, refletindo em um cuidado essencial e humanizado ao paciente queimado.


REFERÊNCIAS

1. Serra MCVF, Lima Junior EM. Tratado de Queimaduras. São Paulo: Editora Atheneu; 2006.

2. Armstrong LE, Munoz CX, Armstrong EM. Distinguishing low and high water consumers - A paradigm of disease risk. Nutrients. 2020;12(3):858.

3. Vana LPM, Fontana C, Ferreira MC. Algoritmo de tratamento cirúrgico do paciente com sequela de queimadura. Rev Bras Queimaduras. 2010;9(2):45-9.

4. Winckworth S, Allorto NL, Clarke DL, Aldous C. Perioperative fasting in burn patients: Are we doing it right? S Afr J Surg. 2015;53(2):65-6.

5. Nascimento LAD, Garcia AKA, Conchon MF, Aroni P Pierotti I, Martins PR, et al. Advances in the Management of Perioperative Patients' Thirst. AORN. 2020;111(2):165-79.

6. do Nascimento LA, Fonseca LF, Dos Santos CB. Inter-rater Reliability Testing of the Safety Protocol for Thirst Management. J Perianesth Nurs. 2018;33(4):527-36.

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9. Pierotti I, Nascimento LAD, Rossetto EG, Furuya RK, Fonseca LF Elaboration, validation and reliability of the safety protocol for pediatric thirst management. Rev Latino-Am Enfermagem. 2020;28:e3321.

10. Garcia AKA, Furuya RK, Conchon MF, Rossetto EG, Dantas RAS, Fonseca LF. Menthol chewing gum on preoperative thirst management: randomized clinical trial. Rev Latino-Am Enfermagem. 2019;27:e3180.

11. Conchon M, Fonseca LF. Efficacy of an Ice Popsicle on Thirst Management in the Immediate Postoperative Period: A Randomized Clinical Trial. J Perianesth Nurs. 2018;33(2):153-61.

12. Carlucci VDS, Rossi LA, Ficher AMFT, Ferreira E, Carvalho EC. A experiência da queimadura na perspectiva do paciente. Rev Esc Enferm USP. 2007; 41(1):21-8.

13. Yin RK. Estudo de caso: Planejamento e Métodos. Porto Alegre: Bookman; 2015.

14. Silva LCJR, Aroni P, Fonseca LF. I am thirsty! Experience of the surgical patient in the perioperative period. Rev SOBECC. 2016;21(2):75-81.

15. Pierotti I, Fracarolli IFL, Fonseca LF, Aroni P. Evaluation of the intensity and discomfort of perioperative thirst. Esc Anna Nery. 2018;22(3):e20170375.









Recebido em 20 de Julho de 2020.
Aceito em 2 de Maio de 2022.

Local de realização do trabalho: Universidade Estadual de Londrina, Londrina, PR, Brasil.

Conflito de interesses: Os autores declaram não haver.


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