1337
Visualizações
Acesso aberto Revisado por pares
Artigo Original

Queimaduras ocupacionais no Distrito Federal, Brasil: Estudo retrospectivo de 17 anos

Work-related burns in the Federal District, Brazil: A 17-year retrospective study

Damião Marcelo Pontes Feitosa1; Carmelia Matos Santiago Reis2

RESUMO

OBJETIVO: Avaliar a epidemiologia das queimaduras ocupacionais e as características sociodemográficas das vítimas de queimaduras internadas em um hospital público no período de 17 anos.
MÉTODO: Estudo longitudinal, retrospectivo de abordagem quantitativa realizado na unidade de queimados de um hospital público no Brasil de janeiro de 2002 a dezembro de 2018. Entre 4201 queimados internados nesse período, 497 foram vítimas de queimaduras no ambiente de trabalho e tiveram seus prontuários médicos e de alta hospitalar avaliados retrospectivamente.
RESULTADOS: A maioria dos pacientes era do sexo masculino (88,5%) e a média de idade foi de 35 anos (intervalo, 18-74). As causas mais frequentes de queimaduras foram eletricidade (41,1%), líquidos inflamáveis (27,5%) e chamas (11,7%). As ocupações mais comuns foram: eletricista (25,3%), cozinheiro (10,9%) e mecânico (8,2%). A superfície corporal queimada média foi de 15,4% e a taxa de mortalidade foi de 2,6%. Variações anuais foram observadas na frequência mensal de acidentes de trabalho, com aumento do número de queimaduras em maio e novembro, que são meses que precedem festividades culturais no Brasil.
CONCLUSÃO: Poucas mudanças na epidemiologia e gravidade das queimaduras ocupacionais foram observadas no período de 17 anos de estudo, sugerindo que os programas de prevenção não foram eficazes na redução de queimaduras no ambiente de trabalho. Assim, novas iniciativas dos setores público e privado são necessárias, visando a prevenção de queimaduras de trabalho.

Palavras-chave: Queimaduras. Queimaduras por Corrente Elétrica. Acidentes de Trabalho. Riscos Ocupacionais. Epidemiologia.

ABSTRACT

OBJECTIVE: To evaluate the epidemiology of work-related burns and sociodemographic characteristics of burn victims admitted to a public hospital over a period of 17 years.
METHODS: This longitudinal, retrospective, quantitative study was conducted in the burn unit of a public hospital in Brazil from January 2002 to December 2018. Of the 4201 burn patients admitted to the hospital during the study period, 497 of them were victims of work-related burns, and therefore their hospital discharge summary and medical records were retrospectively reviewed.
RESULTS: Most patients were men (88.5%) and the mean age was 35 years (range, 18-74). Electricity was the most frequent cause of burns (41.1%), followed by flammable liquids (27.5%) and flames (11.7%). The most common occupations were electricians (25.3%), cooks (10.9%), and mechanics (8.2%). The mean total body surface area involved was 15.4% and the mortality rate was 2.6%. Annual periodic variations were observed in the monthly frequency of work-related burns, with an increased number of burn accidents occurring in May and November, which are months that precede cultural festivities in Brazil.
CONCLUSIONS: Few changes in the epidemiology and severity of work-related burns were observed during the 17-year study period, suggesting that prevention programs have not been effective in reducing burn accidents in the workplace. Thus, new initiatives from the public and private sectors aiming at preventing work-related burn injuries are necessary.

Keywords: Burns. Burns, Electric. Accidents, Occupational. Occupational Risks. Epidemiology.

INTRODUÇÃO

A queimadura é reconhecida mundialmente como um dos traumas mais graves em razão ao seu impacto socioeconômico. Queimaduras graves podem resultar em morte e os sobreviventes de queimaduras podem sofrer inúmeras consequências, tais como: dor crônica, sequelas físicas incapacitantes devido a contraturas, grande sofrimento psíquico, desfiguração física e imagem corporal negativa que afetarão o indivíduo e seus familiares por muitos anos1-6. Em 2004, a incidência mundial de queimaduras graves que necessitaram atendimento médico foi de 11 milhões de pessoas, ocupando o quarto lugar com relação a todos os traumas3,4,7. Estudos mostram que 20% a 29% das queimaduras estão relacionadas a acidentes de trabalho3,4. As queimaduras são responsáveis por cerca de 2500 óbitos anuais no Brasil8 e mais de 300.000 mortes por ano no mundo4. Aproximadamente, 90% das queimaduras ocorrem em países de baixa ou média renda4,6,8, e estão mais relacionadas a fatores socioeconômicos do que a fatores culturais ou educacionais4,6.

Todos esses parâmetros afetam a economia de um país, uma vez que o tratamento de queimaduras é uma das intervenções mais caras. Os custos financeiros vão muito além dos valores referentes ao atendimento na fase aguda porque os custos de internações prolongadas, programas de reabilitação funcional e o tratamento das sequelas são altos e muitas vezes inacessíveis à vítima, onerando, assim, qualquer sistema de saúde no mundo6,7,9,10. Nos Estados Unidos, o custo médio das taxas hospitalares é de US$ 54.000 por paciente11. O instituto "National Health Interview Survey" estimou que, nos Estados Unidos, 42% das queimaduras estão relacionadas ao trabalho11. Na Europa, o custo médio por admissão de paciente queimado é em torno de 8.000 Euros9.

Assim, o objetivo deste estudo foi avaliar os aspectos epidemiológicos e socioeconômicos de vítimas de queimaduras por acidentes de trabalho internados em um hospital público no período de 17 anos.


MÉTODO

Trata-se de um estudo longitudinal, retrospectivo, de abordagem quantitativa desenvolvido na Unidade de Tratamento de Queimados (UTQ) do Hospital Regional da Asa Norte (HRAN), em Brasília-DF (Brasil) de abril de 2017 a janeiro de 2019. Esta unidade é um serviço especializado no atendimento a queimados que recebe pacientes do DF e entorno, e de outros estados como Goiás, Minas Gerais, Bahia, Rondônia e São Paulo.

A amostra do estudo foi composta por todos os pacientes adultos com queimaduras causadas por acidente de trabalho, de ambos os sexos, admitidos na instituição participante no período de 1° de janeiro de 2002 a 31 de dezembro de 2018. Pacientes com queimaduras não relacionadas a atividades laborais foram excluídos no estudo.

Um total de 4201 queimados foram internados na UTQ durante o período do estudo; 497 deles foram vítimas de queimaduras por acidente de trabalho e, portanto, foram incluídos na amostra e seus prontuários médicos e fichas resumo da alta hospitalar foram revisados retrospectivamente.

Os dados foram coletados dos prontuários por meio de formulário padronizado e tabulados em planilha Excel (Microsoft Corp, Redwood, WA, EUA) pelo primeiro autor (DMPF). A coleta de dados incluiu os seguintes parâmetros: idade, sexo, procedência, profissão, renda mensal, escolaridade, tipo de acidente de trabalho, agente causador da queimadura, tempo de internação, extensão da superfície corporal queimada (SCQ), região atingida, grau de queimadura, tratamento realizado, data do acidente, comorbidades associadas, complicações e evolução do quadro dos indivíduos internados.

Para análise dos dados, foram utilizados os programas R versão 3.5.1 (R Core Team, Vienna, Áustria) e RStudio versão 1.1.456 (RStudio Inc, Boston, MA, EUA), e a planilha Office Excel (Microsoft Corp), a qual foi usada para tabulação dos dados, análise descritiva para determinação dos valores médio, mínimo e máximo, e desvio padrão de variáveis, e apresentação dos resultados através de gráficos e tabelas de distribuição de frequência e percentagem. As associações entre as variáveis foram testadas por meio da correlação de Spearman (r), correlação de Kendall (t), teste do Qui-quadrado (X2), teste exato de Fisher (p) e análise de variância (ANOVA, p). O teste exato de Fisher foi usado para valores esperados menores que cinco (números pequenos), para os quais o teste do Qui-quadrado era inadequado. Testes de tendência e interação foram realizados para avaliar a incidência de queimaduras por acidentes de trabalho.

Os dados estão expressos como porcentagens (%), médias, desvio padrão (DP) e intervalos de ocorrência. Os testes estatísticos foram realizados com intervalo de confiança (IC) de 95% e nível de significância α 0,05 (p<0,05).

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde (FEPECS), sob o parecer n° 2591.662. Foi elaborado segundo a Resolução CNS/MS-466/12 do Conselho Nacional de Saúde que aprova as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos, e com base nos princípios éticos da Declaração de Helsinki e suas versões posteriores. O anonimato do paciente foi mantido.


RESULTADOS

A mostra foi composta por 497 pacientes, correspondendo a todas as vítimas de queimaduras por acidente de trabalho (11,8%) de um total de 4201 queimados internados na UTQ participante durante o período de estudo.

Segundo os dados demográficos, 314 (63,3%) destes pacientes eram procedentes do DF, dos quais 27 (8,6%) eram oriundos de Brasília; 158 (31,9%) eram procedentes dos estados de Goiás ou Minas Gerais, e 24 (4,8%) vieram de outras localidades.

A amostra foi constituída por 440 (88,5%) homens e 57 (11,5%) mulheres, sendo a proporção de homem:mulher de 8:1. A idade média foi de 35 anos (variação, 18-74), sendo que a idade média dos homens foi de 35,2 anos (DP=10,63) e as das mulheres foi de 33,2 anos (DP=11,64). Considerando-se ambos os sexos, a maior frequência de queimaduras ocupacionais (n=159, 32%) foi observada na faixa etária de 26 a 35 anos; 66,5% (n=323) dos pacientes tinham menos de 40 anos; e apenas 4% (n=20) tinham mais de 55 anos.

A porcentagem de vítimas de queimaduras por acidente de trabalho atendidos na UTQ por ano variou de 8% em 2005 a 14,9% em 2008 (média=11,83%; DP=6,5%).

A média do tempo de internação foi de 14,6 dias (variação = 1-83; DP=13,91). Foi observada uma fraca correlação negativa entre o tempo de internação e o ano de internação (r= -0,1171; t= -0,0811), o que sugere uma diminuição muito pequena do tempo de internação com o passar dos anos.

A frequência de queimaduras por acidente de trabalho não diminuiu ao longo dos 17 anos de estudo (Tabela 1).




Os meses mais prevalentes foram novembro (n=56; 11,3%), maio (n=55; 11,1%) e junho (n=46; 9,3%) em comparação aos demais meses (Figura 1).


Figura 1 - Distribuição do número de internações hospitalares por queimaduras ocupacionais segundo os meses do ano. Brasília, DF, 2002-2018.



As causas mais prevalentes de queimaduras ocupacionais foram eletricidade (41,1%), líquido inflamável (27,5%), chamas (11,7%), líquido aquecido (11,7%), agentes químicos (4,8%), metal aquecido (2,6%) e outros (0,6%). O álcool foi responsável por 51,8% das queimaduras causadas por líquidos inflamáveis.

Houve maior prevalência queimaduras entre ocupantes de profissões que envolvem eletricidade, incluindo eletricistas, eletricistas de rede, soldadores, trabalhadores da construção civil, mecânicos, técnicos de contadores elétricos e operadores de máquinas, correspondendo a 126 (25,4%) casos, seguidos por cozinheiros (n=103; 10,9%) e mecânicos (n=78; 8,2%), como mostra a Figura 2.


Figura 2 - Distribuição da frequência das vítimas de queimaduras segundo o tipo de ocupação. Brasília, DF, 2002-2018.



A maioria dos pacientes (n=337; 67,8%) sofreram queimaduras de 2° grau (lesões superficiais e profundas) e de 3° grau (lesões de espessura total), 149 (30%) pacientes sofreram somente queimaduras de 2° grau, 10 pacientes tiveram somente queimaduras de 3° grau, e um paciente sofreu queimaduras de 1° (lesões cutâneas), 2° e 3° graus.

A SCQ média foi de 15,4% (variação = 1%-97%). A maioria dos pacientes (53,7%) apresentou SCQ=10% (pequeno queimado), 25,2% teve 11% -20% SCQ (médio queimado) e 21,1% apresentou SCQ > 20% (grande queimado).

Os membros superiores foram os locais anatômicos mais atingidos, correspondendo a 52,2% dos casos, sendo as mãos o segmento mais afetado, representando 28,6% de todas as queimaduras (Tabela 2).




Entre os 497 pacientes, 494 (99,4%) indivíduos receberam algum tratamento tópico, 486 (97,8%) foram tratados com curativos com sulfadiazina de prata, 32 (6,4%) com hidrocoloide e 23 (4,6%) com colagenase; com média de 7,8 (DP=7,26) curativos por paciente. Um total de 338 (68%) pacientes receberam tratamento cirúrgico; 334 (67,2%) foram tratados com desbridamento, 202 (40,6%) receberam enxerto de pele; 26 (5,2%) rotação de retalho, 18 (3,6%) sofreram amputação de membros e seis (1,2%) foram tratados com escarotomia.

O número médio de tratamentos cirúrgicos por paciente foi de 2,3 (DP=5,23). A correlação entre tratamento recebido e agente causal indicou que enxerto de pele (p<0,001), retalho de pele (p<0,001) e desbridamento (p=0,0345) foram tratamentos dependentes e que amputação (p=0,0628) e escarotomia (p=1) se mostraram independentes do agente causal.

As comorbidades preexistentes mais prevalentes foram hipertensão arterial (70%), diabetes melito (15%) e tireoidopatias (15%). Análise de variância mostrou não haver uma relação estatisticamente significativa entre a preexistência de comorbidades e tempo de internação (p=0,763).

A maioria dos pacientes (n=261; 52,5%) apresentou complicações pós-queimadura. As complicações mais frequentes foram infecção (n=221; 44,5%), anemia (n=34; 6,8%) e insuficiência renal (n=27; 5,43%) (Figura 3).


Figura 3 - Distribuição de frequência de complicações por queimaduras em ambiente de trabalho na amostra. Brasília, DF, 2002-2018



Infecção da corrente sanguínea (n=23; 4,6%) foi a principal causa de morte. Em todos os casos de anemia, os pacientes receberam transfusão de concentrado de hemácias.

Um total de 483 (97,2%) pacientes queimados receberam alta hospitalar e foram encaminhados para acompanhamento ambulatorial, 13 (2,6%) pacientes faleceram e um (0,2%) paciente foi transferido para a unidade de terapia intensiva.


DISCUSSÃO

A queimadura é considerada um dos traumas mais devastadores devido à gravidade da lesão e alterações físicas resultantes2,5,7, e um grave problema de saúde pública4.

Foi realizada a leitura criteriosa de 60 artigos nacionais e internacionais encontrados nas bases de dados LILACS e MEDLINE, dos quais 40 foram excluídos por terem sido publicados há mais de 15 anos ou por não abordarem as queimaduras ocupacionais. Notou-se uma grande escassez de dados estatísticos epidemiológicos recentes, relacionados às queimaduras por acidente de trabalho no Brasil12. Alguns estudos sobre queimaduras em geral foram realizados em centros de tratamento de queimados no Brasil5,7,13-16. Estudos internacionais sobre queimaduras em ambiente de trabalho foram utilizados para comparação do atendimento prestado às vítimas de queimaduras3,4,6,11.

Embora pesquisas mostrem que a incidência de queimaduras tenha diminuído nos últimos anos, a proporção de queimaduras por acidente de trabalho continua alta, variando entre 20% e 30%3,4,9. Neste estudo, a porcentagem média de queimaduras por acidente de trabalho foi de 11,83%, variando de 8% a 14,9%, o que contrasta com estudos anteriores que relatam taxas de 23% no Canadá11 a 42% nos EUA3. Essa diferença pode ser atribuída à subnotificação que se faz em alguns países como o Brasil1,8,12 e pela realidade epidemiológica de cada região6,10,12.

A maioria dos pacientes com queimaduras ocupacionais era do sexo masculino, com proporção homem:mulher de 8:1. Homens trabalham em serviços que exigem maior esforço físico e estão expostos às atividades de maior risco de acidentes, como operação de equipamentos elétrico-mecânicos, manutenção de redes elétricas, manipulação de substâncias químicas e combustíveis, entre outros2,4,9, consistente como os resultados obtidos.

A maioria dos pacientes tinha menos de 40 anos e, portanto, pertenciam às faixas etárias mais produtivas3,7,11. A alta incidência de queimaduras ocupacionais entre trabalhadores jovens pode ser atribuída à falta de experiência e treinamento3,9,11. Os resultados também mostraram que os pacientes com mais de 55 anos representaram o menor grupo de vítimas de queimaduras, em concordância com a literatura3,11, possivelmente por serem trabalhadores mais cuidadosos e experientes.

Os profissionais que tiveram maior número de queimaduras ocupacionais foram eletricistas, cozinheiros e mecânicos. A eletricidade foi uma das descobertas que mais causou impacto na humanidade, mas corresponde a 5% de todas as causas de queimaduras e apresenta elevada taxa de morbidade e mortalidade3,15-17. Queimaduras elétricas ocupacionais afetam principalmente homens jovens17, sendo apontadas como a principal causa de 73% das amputações de mãos em um centro de queimados no Brasil17. Eletricidade foi a principal causa de queimadura ocupacional, em concordância com estudos prévios3,12, mas em contraste com outros artigos que reportam chamas4,9 e agentes químicos18 como causas principais.

A maioria dos acidentes de trabalho podem ser evitados6,10,11, pois muitos trabalhadores não usam equipamentos de proteção individual (EPI), não têm treinamento adequado sobre o uso de equipamentos e tecnologias, e estão sujeitos a jornada excessiva de trabalho, o que pode levar à diminuição da atenção às tarefas no trabalho12.

Em contraste com outros estudos4,6,11,18, os acidentes provocados por agentes inflamáveis corresponderam a 27,5% dos casos. Isto pode ser atribuído ao fato de que, no Brasil, agentes inflamáveis como o álcool são utilizados em limpeza, como antisséptico e no acendimento de churrasqueiras13.

As queimaduras químicas representaram 4,8% dos casos, provavelmente porque a indústria química não é bem desenvolvida na região. Segundo a American Burn Association (ABA)18, as queimaduras químicas representaram 3% de todas as queimaduras nos EUA em 2017.

Os membros superiores (braços, antebraços e mãos) são as regiões do corpo mais atingidas por queimaduras, principalmente aquelas que ocorrem no ambiente de trabalho3,6,12,17, provavelmente porque eles são utilizados para a realização de atividades laborais, sofrendo maior exposição e ficando mais propensos a acidentes1,6. Nossos resultados também apontaram os membros superiores como os locais mais atingidos por queimaduras, sendo as mãos o local mais prevalente. As mãos correspondem a 6% da superfície corporal total (SCT) e queimaduras nas mãos podem levar ao comprometimento funcional em cerca de 57% das vítimas17.

Estudos sobre queimaduras por acidente de trabalho trazem poucos relatos da extensão e profundidade das lesões7. Nesta pesquisa, pacientes foram classificados como médio queimado (25,1%; SCQ=11%-20%) e grande queimado (21,13%; SCQ>20%). Quanto maior a extensão e a profundidade das queimaduras maiores são as sequelas funcionais14. Pacientes grande queimado requerem um tempo maior de reabilitação tanto física quanto psicológica2,7, diminuindo as chances de indivíduos em idade produtiva de desenvolverem seus potenciais socioeconômicos1.

A média do tempo de hospitalização foi de 14,6 dias, sem apresentar uma redução clinicamente significativa durante o período de estudo. O tempo de hospitalização está relacionado à gravidade da queimadura, idade do indivíduo e tratamento cirúrgico realizado4. Pacientes com SCQ acima de 20% geralmente são submetidos a mais procedimentos cirúrgicos e, consequentemente, permanecem mais tempo hospitalizados4,10, aumentando os custos de tratamento4,9. Um estudo anterior abordando o tempo de internação em pacientes queimados em ambiente de trabalho relatou tempos de internação variando de 12,8 dias (pacientes queimados por eletricidade) a 18,2 dias (pacientes queimados por chama)11, semelhante aos achados deste estudo.

Apesar dos avanços no tratamento das queimaduras, calcula-se que 75% da mortalidade por queimaduras está relacionada às infecções que se dão em decorrência de fatores como: disfunção do sistema imunológico, grande carga cutânea bacteriana, translocação bacteriana intestinal, hospitalização prolongada e procedimentos invasivos14,19, em concordância com os resultados encontrados neste estudo, em que as complicações mais prevalentes foram infecção (44,5%) e anemia (6,8%).

Estudos têm mostrado que a morbimortalidade em pacientes queimados graves decresce quando estes são tratados precocemente com desbridamento cirúrgico e uso tópico de antimicrobianos19. Neste estudo, 97,8% dos pacientes foram tratados com sulfadiazina de prata 1%, a qual é um agente tópico bactericida, eficaz contra fungos patogênicos, que alivia a dor e está relacionada com maiores taxas de cicatrização19. Desbridamento (67,2%) foi o procedimento cirúrgico mais realizado e amputação (3,6%) o menos realizado, em contraste ao encontrado em um estudo anterior15.

A diminuição das taxas de mortalidade tem sido relacionada com os avanços no uso de antibióticos de última geração, suporte nutricional, avanços no tratamento cirúrgico, suporte ao paciente crítico, uso de substitutos de pele e medidas preventivas nos locais de trabalho16. Neste estudo, a mortalidade por queimaduras ocupacionais foi de 2,6%, semelhante a taxas de países de primeiro mundo4,6,9,11, que relataram taxas de mortalidade entre 1,8% e 4,4%, em contraste com países africanos, que apresentam taxas de mortalidade de aproximadamente 17%10.

Variações periódicas anuais foram observadas na frequência mensal de queimaduras ocupacionais, com aumento do número de queimaduras nos meses de maio e novembro, os quais precedem as festividades culturais no Brasil. Não foi encontrada redução significativa na frequência de queimaduras por acidente de trabalho no período de 17 anos do estudo, sugerindo que as medidas preventivas (pelo menos em nível regional) não foram eficazes na redução dos acidentes por queimaduras no local de trabalho.

As queimaduras são consideradas diretamente relacionadas à atividade socioeconômica de um país, sendo os indivíduos mais afetados os de baixa renda4. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), o conceito de pobreza é multifatorial, não se restringindo à renda, mas estando também relacionando à expectativa de vida, oportunidades de emprego, condições de moradia, participação social, entre outros20. Neste estudo, 80,5% dos queimados apresentavam vulnerabilidade social, em concordância com a literatura20.

Estudos futuros envolvendo múltiplos centros são necessários para ampliar o conhecimento sobre as características epidemiológicas das queimaduras ocupacionais nas diferentes regiões do país e do mundo, contribuindo para o desenvolvimento e implementação de programas eficazes de prevenção.


CONCLUSÃO

Este é um dos primeiros estudos de longa duração sobre queimaduras por acidente de trabalho realizados no Brasil. A causa mais frequente de queimaduras foi a eletricidade, seguida por líquidos inflamáveis e chamas. A maioria dos pacientes apresentou complicações pós-queimadura, sendo a infecção a mais frequente. A infecção da corrente sanguínea foi a principal causa de morte. A taxa de mortalidade foi semelhante às observadas em países desenvolvidos. Um grande número de trabalhadores sofreu queimaduras graves.

Um ponto preocupante foi o fato de que a maioria das queimaduras ocupacionais ocorram entre trabalhadores jovens pertencentes à faixa etária mais produtiva. Este deve ser um alerta às autoridades governamentais, devido ao grande impacto socioeconômico causado por essas lesões. Poucas mudanças nas características epidemiológicas e na gravidade das queimaduras em ambiente de trabalho foram observadas durante o período de 17 anos do estudo, sugerindo que os programas de prevenção não foram eficazes na redução dos acidentes por queimaduras no local de trabalho. Assim, novas iniciativas públicas e privadas são necessárias porque as queimaduras ocupacionais são lesões graves que, em grande parte, podem ser prevenidas.


REFERÊNCIAS

1. Cardoso MG, Romero LO, Bachi ZC, Eid VRT, Beretta D, Jericó MC. Description of events of severe occupational accidents. Arq Ciênc Saúde. 2016;23(4):83-8.

2. Rocha JLFN, Canabrava PBE, Adorno J, Gondim MFN. Qualidade de vida dos pacientes com sequelas de queimaduras atendidos no ambulatório da unidade de queimados do Hospital Regional da Asa Norte. Rev Bras Queimaduras. 2016;15(1):3-7.

3. Reichard AA, Konda S, Jackson LL. Occupational burns treated in emergency departments. Am J Ind Med. 2015;58(3):290-8.

4. Ortiz-Prado E, Armijos L, Iturralde AL. A population-based study of the epidemiology of acute adult burns in Ecuador from 2005 to 2014. Burns. 2015;41(3):582-9.

5. Marques MD, Amaral V, Marcadenti A. Perfil epidemiológico dos pacientes grandes queimados admitidos em um hospital de trauma. Rev Bras Queimaduras. 2014;13(4):232-5.

6. Müller M, Mose EM, Pfortmueller CA, Olariu R, Lehmann B, Exadaktylos AK. Aetiology of adult burns treated from 2000 to 2012 in a Swiss University Hospital. Burns. 2016;42(4):919-25.

7. Zaruz MJF, Lima FM, Daibert EF, Andrade AO. Queimaduras no Triângulo Mineiro (Brasil): estudo epidemiológico de uma unidade de queimados. Rev Bras Queimaduras. 2016;15(2):97-103.

8. Santos EA, Braga DD, Fuculo Junior PRB, Oliveira TD, Bazzan JS, Echevarría-Guanilo ME. Ocupações com maior risco para acidente com queimaduras. Rev Bras Queimaduras. 2014;13(4):260-4.

9. Santos JV, Oliveira A, Costa-Pereira A, Amarante J, Freitas A. Burden of burns in Portugal, 2000-2013: A clinical and economic analysis of 26,447 hospitalisations. Burns. 2016;42(4):891-900.

10. Peck MD. Epidemiology of burns throughout the world. Part I: distribution and risk factors. Burns. 2011;37(7):1087-100.

11. Clouatre E, Gomez M, Banfield JM, Jeschke MG. Work-related burn injuries in Ontario, Canada: A follow-up 10-year retrospective study. Burns. 2013;39(6):1091-5.

12. Antoniolli L, Martins CL, Echevarría-Guanilo ME, Dal Pai D. Acidentes de trabalho por queimaduras: uma revisão da literatura. In: III Seminário Internacional sobre o Trabalho na Enfermagem; 2011. Bento Gonçalves, RS, Brasil.

13. Nestor A, Turra K. Perfil epidemiológico dos pacientes internados vítimas de queimaduras por agentes inflamáveis. Rev Bras Queimaduras. 2014;13(1):44-50.

14. Nascimento SB, Soares LSS, Areda CA, Saavedra PAE, Leal JVO, Adorno J, et al. Perfil dos pacientes hospitalizados na unidade de queimados de um hospital de referência de Brasília. Rev Bras Queimaduras. 2015;14(3):211-7.

15. Tondineli TH, Rios JAS, Candelario K, Ribeiro RC, Maceira Júnior L, Freitas MCV. Queimaduras elétricas por alta voltagem: cinco anos de análise epidemiológica e tratamento cirúrgico atualizado. Rev Bras Cir Plast. 2016;31(3):380-4.

16. Torquato ACS, Leitão PCA, Lima LHG, Lima LG, Ferraz MM, Barreto MGP, et al. Estudo epidemiológico de pacientes com queimaduras por eletricidade atendidos em unidade de queimados em Recife - PE. Rev Fac Ciênc Méd (Sorocaba). 2015;17(3):120-2.

17. Narikawa R, Michelski DA, Hiraki PY, Ueda T, Nakamoto HA, Tuma Júnior P, et al. Análise epidemiológica da mão queimada no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Rev Bras Queimaduras. 2011;10(3):89-92.

18. American Burn Association. National Burn Repository: 2017 Update. Report of data from 2008-2017. Chicago, IL: American Burn Association; 2017.

19. Rosanova MT, Stamboulian D, Lede R. Systematic review: which topical agent is more efficacious in the prevention of infections in burn patients? Arch Argent Pediatr. 2012;110(4):298-303.

20. Gonçalves FO, Andrade KR, Araújo LRC, Rosa TM. Índice multidimensional de pobreza (IMP): as dimensões da pobreza no Distrito Federal e suas políticas de enfrentamento. Texto para Discussão 6. Brasília: Companhia de Planejamento do Distrito Federal; 2015.









Recebido em 11 de Novembro de 2020.
Aceito em 9 de Agosto de 2021.

Local de realização do trabalho: Hospital Regional da Asa Norte (HRAN), Brasília, DF, Brasil

Conflito de interesses: Os autores declaram não haver


© 2024 Todos os Direitos Reservados