Na rede pública brasileira, o tratamento local de queimaduras é feito com a pomada sulfadiazina de prata, na grande maioria dos serviços de queimados. Na Europa, nos EUA e alguns países da América do Sul este mesmo tratamento é realizado com pele humana (homóloga) ou animal (heteróloga). O Brasil jamais teve uma pele animal registrada na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e disponibilizada pelo Sistema Unico de Saúde (SUS), para uso nos pacientes queimados. O Ministério da Saúde preconiza que o Brasil deveria ter 13 bancos de pele, entretanto, existem três em funcionamento, em Sao Paulo, Rio Grande do Sul e Paraná, que nao suprem 1% da necessidade de pele do país. Estamos atrasados 50 anos no tratamento local das queimaduras sem o uso de peles, num país onde 97% dos brasileiros que se queimam nao têm plano de saúde.
Há seis anos (2011), o médico pernambucano, cirurgiao plástico Marcelo Borges, ao ver uma matéria no Jornal do Commércio de Pernambuco, que revelou que a pele da tilápia é subproduto de descarte e apenas 1% é empregado no artesanato (confecçao de bolsa e sapato), teve a ideia de utilizar esta pele no tratamento das queimaduras. No ano de 2014, Marcelo Borges compartilhou a ideia com o cirurgiao plástico cearense Edmar Maciel, que o convidou para viabilizar e realizar este estudo no Ceará. O pesquisador Odorico Moraes, diretor presidente do Núcleo de Pesquisa e Desenvolvimento de Medicamentos (NPDM), na Universidade Federal do Ceará (UFC), entrou para o grupo com o desafio de pesquisar a pele da tilápia e desenvolver o produto. Finalmente, foi convidado o cirurgiao plástico de Goiás Nelson Piccolo, compondo a equipe de coordenaçao do trabalho.
O Instituto de Apoio ao Queimado (IAQ), uma Organizaçao nao Governamental (ONG) no Ceará que realiza gratuitamente a reabilitaçao física e psíquica de vítimas de queimaduras há 10 anos, fez um convênio de pesquisa com a Enel, em fevereiro de 2015, com término em junho de 2018, para financiar o projeto. Outros projetos de pesquisa já eram realizados com sucesso por estas duas instituiçoes e os resultados serao em breve publicados.
Foi elaborado pelos coordenadores da pesquisa um cronograma de estudos pré-clínicos e clínicos, em cativeiro, laboratório, animais e pacientes vítimas de queimaduras, para permitir a avaliaçao da segurança e da eficácia da pele da tilápia do Nilo, para criaçao de um curativo biológico oclusivo, objetivando futuramente o registro da pele na ANVISA. Neste momento, a equipe que estuda a pele da tilápia, nas mais diversas fases, é composta por 65 colaboradores. Todos os estudos sao elaborados e executados com total embasamento científico, seguindo as recomendaçoes éticas, boas práticas laboratoriais e clínicas necessárias para realizaçao de estudos com animais e seres humanos, tendo aprovaçao prévia de seus respectivos comitês de ética.
O registro de Patente foi feito no Brasil, no Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI), sob o número BR 10 2015 021435 9. No exterior, o depósito de patente foi realizado e encontra-se registrado sob o número 0000221601669024.
Inicialmente, os pesquisadores foram conhecer a psicultura no açude Castanhao, em Jaguaribara, no Ceará, para entender sobre a criaçao da tilápia, que chegou ao Brasil em 1956. A tilápia do Nilo (Oreochromis niloticus), de onde sao removidas as peles para este estudo, chegou pela primeira vez no Brasil em 1971, entrando pelo Ceará, difundindo-se para outros estados brasileiros e países vizinhos.
A fase pré-clínica da pesquisa foi conduzida no NPDM-UFC e constou de 14 etapas, realizadas em 18 meses: 1) cativeiro; 2) visita aos bancos de pele do Hospital das Clínicas de Sao Paulo (HC-SP), Santa Casa de Rio Grande do Sul e Instituto Materno Infantil de Pernambuco (IMIP/PE); 3) estudo histológico da pele da tilápia; 4) esterilizaçao no clorexidine e glicerol em várias etapas e várias concentraçoes; 5) microbiologia; 6) aplicaçao em ratos; 7) estudo laboratorial; 8) estudo de toxicidade; 9) histologia da cicatrizaçao em ratos; 10) criaçao do primeiro banco de pele animal do Brasil; 11) irradiaçao complementar no Instituto de Pesquisa Energética Nucleares de Sao Paulo (IPEN-SP); 12) estudo microbiológico nas etapas da pele esterilizada; 13) estudo da microbiota da Tilápia; e 14) estudo histológico da pele irradiada.
Os estudos histológicos confirmaram que a pele da tilápia apresenta boa quantidade de colágeno Tipo I, boa resistência à traçao e boa umidade, semelhantes à pele humana e melhor que as peles de porco e de ra, no estudo comparativo; na aplicaçao da pele da tilápia em animais constatou-se uma boa aderência da pele ao leito da ferida e melhora no processo de cicatrizaçao; após as etapas de esterilizaçao da pele da tilápia e irradiaçao complementar, demonstrou-se ausência de germes gram (+), gram (-) e fungos, sem alteraçoes histológicas na estrutura da derme e seus elementos (manuscrito em avaliaçao).
Após esta etapa, os resultados foram apresentados na ANVISA em dezembro de 2015, como uma consulta prévia, na qual os pesquisadores foram orientados a realizar um estudo de alergia e de sensibilidade em pele humana, sendo contratada a empresa Allergisa (Campinas-SP). O sucesso nos resultados levou os pesquisadores a iniciar um ensaio clínico fase 2, para avaliar o uso da pele da tilápia em pacientes queimados (manuscrito em avaliaçao).
Assim, outra etapa iniciou-se em julho de 2016, no Instituto Dr. José Frota (IJF), hospital público de Fortaleza, um dos maiores serviços de queimados da regiao Nordeste e do Brasil. Nesta etapa, foram incluídos 60 pacientes com queimaduras de segundo grau superficial e profundo, com tratamento ambulatorial e internado. Os resultados foram animadores: a pele da tilápia teve ótima aderência ao leito da ferida, evitando a contaminaçao externa, a perda de líquidos e nao sendo necessária sua remoçao, permanecendo até a completa cicatrizaçao das queimaduras de segundo grau superficial. O estudo demonstrou diminuiçao na dor e no desconforto do tratamento com a pele da tilápia, menor trabalho da equipe e reduçao dos custos.
Os resultados destes estudos têm gerado uma produçao científica de grande valor. Várias foram as apresentaçoes em jornadas, simpósios e congressos no Brasil e no exterior até o momento. Estas pesquisas também serao temas de dissertaçoes e teses. Os coordenadores pretendem publicar todos os resultados em perídiocos, alguns já publicados
1,2, outros em fase de elaboraçao de manuscrito ou aprovaçao.
No mês de novembro de 2016, os resultados da pesquisa foram apresentados e obtiveram dois prêmios, ambos em primeiro lugar: no Congresso Brasileiro de Queimaduras, na Bahia, como melhor trabalho apresentado, e no Congresso Brasileiro de Cirurgia Plástica, em Fortaleza, como melhor prêmio de Inovaçao, Criatividade e Pioneirismo.
Uma coletiva para a imprensa foi concedida para apresentaçao dos resultados, em dezembro de 2016, com grande repercussao na mídia nacional e internacional. Após este momento e com os resultados, a pesquisa foi veiculada mais de uma centena de vezes em rádio, jornal e televisao no Brasil, por meio de entrevistas concedidas pelos quatro pesquisadores. No exterior, a pesquisa foi divulgada em sites de 28 países, em oito idiomas, com mais de 125 milhoes de visitas.
Um ensaio clínico fase 3 iniciou-se em abril de 2017.O projeto acontece no IJF, com 120 pacientes vítimas de queimaduras de segundo grau superficial, adultos, em tratamento ambulatorial. Outros dois projetos estao em andamento: estudo com 30 crianças internadas com queimaduras de segundo grau superficial e estudo comparativo de custos entre o tratamento com pele da tilápia e a sulfadiazina de prata.
O Estado de Goiás iniciou um estudo multicêntrico no Hospital Pronto Socorro para Queimaduras (Dr. Nelson Piccolo), Hospital de Anápolis (Dr. Leonardo Rodrigues) e Hospital Governador Otávio Lage (Dr. Fabiano Calixto). Este projeto envolve 60 pacientes ambulatoriais adultos, com queimaduras de segundo grau superficial. Outros estados (RJ, SP, RN, PE, SC e RS) estao em fase de elaboraçao e aprovaçao de protocolo para iniciar ensaio clínico com a pele.
Além da sua utilizaçao para o tratamento de queimaduras e feridas, várias especialidades como urologia, endoscopia, otorrinolaringologia, odontologia, e ginecologia estao elaborando projetos para iniciar estudos com a pele da tilápia, tendo esta última realizado com sucesso a primeira cirurgia de reconstruçao de neovagina (manuscrito em avaliaçao).
Esperamos, em breve, apresentar para o mercado mundial um produto inovador e genuinamente brasileiro, um curativo biológico oclusivo de pele do peixe tilápia do Nilo, idealizado e desenvolvido em todas as fases por pesquisadores e instituiçoes do Brasil, eficaz, seguro e de baixo custo, produzido a partir de um subproduto que seria descartado.
REFERENCIAS1. Alves APNN, Verde MEQL, Ferreira Júnior AEC, Silva PGB, Feitosa VP, Lima Júnior EM, et al. Avaliaçao microscópica, estudo histoquímico e análise de propriedades tensiométricas da pele de tilápia do Nilo. Rev Bras Queimaduras. 2015;14(3):203-10.
2. Lima Junior EM, Bandeira TJPG, de Miranda MJB, Ferreira GE, Parente EA, Piccolo NS, et al. Characterization of the microbiota of the skin and oral cavity of Oreochromis niloticus. J Health Biol Sci. 2016;4(3):193-7. DOI:
http://dx.doi.org/10.12662/2317-3076jhbs.v4i3.767.p193-197.2016