RESUMO
Classicamente, a infecçao é atribuída como a principal causa de morte em queimaduras. Entretanto, outros parâmetros estao também intimamente relacionados à mortalidade. A superfície corporal queimada (SCQ), a profundidade da queimadura, idade avançada, a inalaçao de fumaça, o regime da reposiçao hídrica, a temporalidade dos procedimentos cirúrgicos, bem como o uso racional de antimicrobianos exemplificam os principais parâmetros. Este artigo tem o objetivo de discutir brevemente este conjunto de fatores causais relacionados à reduçao da mortalidade no paciente queimado.
Palavras-chave:
Queimaduras. Procedimentos Cirúrgicos Operatórios. Infecção. Anti-Infecciosos.
ABSTRACT
Classically, the infection is attributed as a major cause of death in burns. However, other parameters are also closely related to mortality. The burned body surface area (BSA), the depth of the burn, advanced age, smoke inhalation, the regime of fluid replacement, the temporality of surgical procedures as well as the rational use of antimicrobial exemplify the main parameters. This article aims to briefly discuss this set of causal factors related to the reduction of mortality in burned patients.
Keywords:
Burns. Surgical Procedures, Operative. Infection. Anti-Infective Agents.
INTRODUÇAOAs queimaduras sao únicas entre as lesoes agudas quanto à necrose progressiva de tecidos e possíveis complicaçoes graves após o trauma inicial, tais como a síndrome da resposta inflamatória sistêmica (SIRS) e desequilíbrios metabólicos. Esta intensa instabilidade orgânica pode resultar em falência de múltiplos órgaos e morte.
Classicamente, a infecçao é atribuída como a principal causa de morte em queimaduras
1.Os pacientes com queimaduras graves sao mais propensos a morrer de septicemia devido à liberaçao maciça de mediadores inflamatórios da ferida queimada somada à dificuldade de difusao tecidual dos antimicrobianos devido à trombose dos vasos e necrose tecidual. Entretanto, outros parâmetros estao também intimamente relacionados à mortalidade. A superfície corporal queimada (SCQ), a profundidade da queimadura, idade avançada, presença de inalaçao de fumaça, o regime da reposiçao hídrica, a temporalidade dos procedimentos cirúrgicos, bem como o uso racional de antimicrobianos exemplificam os principais parâmetros.
Portanto, ao invés de abordarmos simplesmente o combate à infecçao como a principal meta visando à reduçao da mortalidade no queimado grave, entendemos que outras medidas devam ser igualmente priorizadas. Este artigo tem o objetivo de discutir brevemente este conjunto de fatores causais relacionados à mortalidade no paciente queimado.
MAGNITUDE DO TRAUMA TÉRMICO E A LESAO INALATORIAA superfície corporal queimada (SCQ)e a inalaçao de fumaça sao parâmetros preditores de morte em queimaduras. Para cada 1% de SCQ estima-se um aumento de 6% no risco de morte, e a presença de inalaçao de fumaça aumentao risco em 9 vezes
2. Adicionalmente, a profundidade da queimadura está diretamente relacionada à mortalidade. As queimaduras de espessura total apresentam um pior prognóstico em relaçao às de espessura parcial.
Queimaduras superiores a 10% da SCQ em crianças ou 15% da SCQ em adultos sao traumas com potencial risco de morte devido à propensao ao choque hipovolêmico. Devem ser tratadas com reposiçao hidroeletrolítica adequada por uso de fórmulas específicas de ressuscitaçao hídrica e acompanhamento em um Centro de Tratamento de Queimados-CTQ
3.
AUMENTO DA FAIXA ETARIACom o aumento da idade, o risco de morte cresce significativamente acompanhando o aumento da extensao das queimaduras. Segundo dados recentes do
National Burn Repository-2011 da
American Burn Association (Canadá, Estados Unidos e Suécia), para queimaduras entre 20% e 30% de SCQ, a faixa etária de 2 a 5 anos de idade apresenta cerca de 1% de taxa de mortalidade, enquanto que,para a faixa de 70 a 80 anos, ocorre cerca de 35% de mortalidade. Para queimaduras mais extensas, entre 60 e 70% de SCQ, a faixa etária de 2 a 5 anos apresenta cerca de 10% de mortalidade, enquanto que a faixa de 70 a 80 anos apresenta cerca de 85% de mortalidade
4.
REPOSIÇAO VOLEMICA CONTROLADAUm dos conceitos que permeiam as discussoes mais recentes sobre a assistência aguda ao queimado grave é a adequaçao da reposiçao hídrica nas primeiras horas, ou dias após o trauma térmico.
Os distúrbios sistêmicos observados nas primeiras horas após uma queimadura grave estao relacionados ao aumento da permeabilidade capilar sistêmica com extravasamento de proteínas para o interstício e uma tendência ao choque hipovolêmico. Assim, a reposiçao de líquidos é obrigatória nas primeiras 24 horas após o trauma extenso de queimadura, minimizando a possibilidade de hipovolemia e insuficiência renal. No entanto, a ressuscitaçao hídrica deve ser conduzida criteriosamente, pois o excesso de líquidos pode agravar o prognóstico de pacientes com queimaduras.
Apesar da conveniência de uso de fórmulas como um guia inicial para a reposiçao de líquidos (por exemplo, a fórmula Parkland: 4 mL x peso (kg) x % de SCQ), na prática clínica é difícil realizar ajustes finos na oferta de fluidos para o paciente gravemente queimado. Geralmente, ocorre uma tendência de se administrar excesso de líquidos ("
fluid-creep")
5. O aumento de evidências tem demonstrado que estratégias agressivas de ressuscitaçao com uso de cristaloides estao associadas a complicaçoes pulmonares, alteraçoes da motilidade gastrointestinal, distúrbios da coagulaçao, imunológicos e disfunçao dos mediadores inflamatórios. Numerosos investigadores avaliaram potenciais fatores de risco para o desenvolvimento de síndrome compartimental abdominal e têm universalmente observado o uso excessivo de cristaloides como o principal determinante
6.
Na última década, nossa equipe do Centro de Tratamento de Queimados do Hospital das Clínicas de Ribeirao Preto da Universidade de Sao Paulo-CTQ-HCFMRP-USP, serviço de referência terciária-SUS, optou pelautilizaçao da fórmula: 3 mL x peso (kg) x % de SCQ para infusao de cristaloides,ao invés da fórmula Parkland, nas primeiras 24 horas após a lesao de queimadura. Observamos uma tendência a menor quantidade de edema nos primeiros dias após queimadura extensa, com consequente reduçao na morbidade. As estratégias de restriçao hídrica controlada têm sido associadas à diminuiçao da frequência da síndrome do desconforto respiratório agudo, tendência a menor tempo de recuperaçao e mortalidade mais baixa
6,7.
CIRURGIAS PRECOCESA queimadura da pele resulta numa intensa resposta inflamatória. Assim, tem sido proposto que a remoçao cirúrgica precoce do tecido queimado pode limitar o aumento da produçao de mediadores inflamatórios. Há cerca de 20 anos, o CTQ-HCFMRP-USP mudou o padrao de cuidados cirúrgicos nas queimaduras profundas. Adotamos a excisao e enxertia precoces, antes da colonizaçao bacteriana (de 3 a 5 dias após o trauma), ao invés de se aguardar a separaçao da escara, como era a conduta tradicional. No mesmo período, observou-se uma reduçao na taxa de mortalidade local de 12% para menos do que 5% (Tabela 1)
8.
PROFILAXIA ANTIMICROBIANA PERIOPERATORIAEstudos apontam que,nos pacientes queimados, a mortalidade está também relacionada à presença de bacteremia
9. A bacteremia ocorre, ainda que em frequência muito variável, quando o paciente é submetido ao desbridamento cirúrgico das feridas
10. A antibioticoprofilaxia perioperatória é, portanto, uma conduta racional no auxílio da prevençao da infecçao disseminada e, consequentemente, da mortalidade.
Estudos individualizados de mapeamento dos principais agentes bacterianos, presentes nos diferentes CTQs, nos parecem de fundamental importância para guiar os esquemas de antibioticoprofilaxia perioperatória. No CTQ-HCFMRP-USP, realizamos estudo comparativo, qualitativo e quantitativo das bactérias presentes em biópsias da pele queimada em um intervalo de 12 anos (1998 e 2010). Observamos que os agentes gram + tendem a prevalecer nas duas primeiras semanas de internaçao, com inversao para agentes gram - nas terceira e quarta semanas. Após a quarta semana, os gram + voltam a prevalecer e ocorre uma tendência a proliferaçao de
Staphylococcus aureus resistentes-MRSA. Observamos ainda que, após 12 anos, houve maior prevalência de germes gram -, diferentemente da pesquisa anterior.
Baseados nestes dados, e após análises dos antibiogramas, alinhamos a antibioticoprofilaxia perioperatória de acordo com o tempo de internaçao.
CONCLUSOESA mortalidade relacionada às queimaduras graves merece discussao mais abrangente na literatura. Além da utilizaçao racional de antimicrobianos, areposiçao hídrica controlada e as cirurgias precoces têm contribuído significativamente no progresso do tratamento dos pacientes vítimas de queimaduras graves, com reduçao da sua mortalidade.
AGRADECIMENTOSAgradecemos a colaboraçao de Lúcia Helena Vitali-Laboratório de Microbiologia e a toda a equipe médica e de enfermagem do CTQ-HCFMRP-USP, em especial ao ex-médico assistente, Frederico Alonso Sabino de Freitas, e aos médicos residentes da Divisao de Cirurgia Plástica-HCFMRP-USP, Fernando Salgueiro Simoes, Daniel Bacco Vilela e Gustavo Seade Gomide, pela colaboraçao na coleta e interpretaçao de dados do estudo microbiológico das feridas queimadas em 1998 e em 2010.
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1. Docente Chefe da Divisao de Cirurgia Plástica do Departamento de Cirurgia e Anatomia da Faculdade de Medicina de Ribeirao Preto da Universidade de Sao Paulo-FMRP-USP, Ribeirao Preto, SP, Brasil
2. Médico Assistente da Divisao de Cirurgia Plástica da Faculdade de Medicina de Ribeirao Preto da Universidade de Sao Paulo-FMRP-USPRibeirao Preto, SP, Brasil
3. Docente do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina de Ribeirao Preto da Universidade de Sao Paulo-FMRP-USPRibeirao Preto, SP, Brasil
Correspondência:
Jayme A Farina Jr
Departamento de Cirurgia e Anatomia-DCA, Hospital das Clínicas - Campus Monte Alegre
Avenida Bandeirantes, 3900, 9º andar
Ribeirao Preto, SP, Brasil - CEP:14048-900
E-mail:
jafarinajr@fmrp.usp.brArtigo recebido: 11/2/2014
Artigo aceito: 19/5/2014
FAEPA-auxílio financeiro na pesquisa dos agentes antimicrobianos no CTQ-HCFMRP-USP.
Nao há conflito de interesses por parte dos autores.
Trabalho realizado no Departamento de Cirurgia e Anatomia do Hospital das Clínicas, Ribeirao Preto, SP, Brasil.