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Relato de Caso

Amputação: as indagações do sujeito

Amputation: the questions of the subject

Iole Dielle de Carvalho1; Maria Cristina Serra2; Luiz Macieira Guimarães Junior3

RESUMO

Apresentaçao de caso de um adolescente de 14 anos, que teve o antebraço direito amputado, em decorrência de choque elétrico. O primeiro aspecto a ser destacado é o luto proveniente da mutilaçao que acometeu o adolescente, após a amputaçao do membro. Associado a isto, existe a questao da autoimagem de alguém que, como esse adolescente, sofreu uma mutilaçao. As reflexoes têm como respaldo o referencial psicanalítico, mais especificamente, o artigo Luto e Melancolia, de Freud, texto este que nos faz pensar aspectos característicos ao caso atendido. A direçao do trabalho é o relato do caso e poder chegar às contribuiçoes da Psicanálise para a elaboraçao da perda.

Palavras-chave: Eletrochoque. Amputação. Pesar. Imagem corporal.

ABSTRACT

Case report of an adolescent of fourteen-years old, who had the right forearm amputated due to an electric shock. The first aspect to be detached is the mourning originating from the mutilation that he suffered, after the surgical remove of part of his arm. Associated to this, there is the issue of self-image of someone who, as this teenager, suffered a mutilation. My reflections have a Psychoanalytic Referential as basis, more specifically, Freud's article Mourning and Melancholia. This text makes us think about aspects of the teenager's case. The paper's direction is the narration of the case and has the right to get to the contributions of Psychoanalysis to the loss elaboration.

Keywords: Eletroshock. Amputation. Mourning. Body image.

O presente trabalho é fruto de reflexoes acerca do atendimento de um adolescente de 14 anos, vítima de queimadura por choque elétrico, que acometeu o antebraço direito, levando à amputaçao do membro.


RELATO DO CASO

O episódio da queimadura


Paciente relatou que, retornando para casa após a aula, parou na subestaçao da distribuidora de energia elétrica para pegar uma pipa, quando, ao tocar a mesma, recebeu descarga elétrica.

Relatou ter permanecido consciente preso ao cabo de energia, até se soltar e cair, perdendo, momentaneamente, a consciência. Em seguida, com a chegada do Corpo de Bombeiros, foi encaminhado ao hospital. Lá chegando, encontrava-se lúcido e globalmente orientado.

Paciente relatou ser o primeiro filho de uma prole de três (as outras sao duas meninas um pouco mais jovens). Os genitores nao se dispuseram a acompanhar o paciente na internaçao, alegando precisar cuidar das filhas e do comércio da família.

Atendimento psicológico

No primeiro atendimento, o paciente foi encontrado, diferentemente dos outros adolescentes internados no setor, sozinho, sem acompanhante, na enfermaria masculina. Parecia um tanto assustado, pois seu olho e mao esquerdos encontravam-se muito edemaciados. O paciente afirmou nao ser preciso incomodar os pais, solicitando acompanhante.

Inicialmente, reagiu bem. Entretanto, nos atendimentos seguintes, começou a apresentar-se entristecido, choroso, queixando-se de saudades da família, trazendo muito medo de ter a mao amputada. O vínculo foi logo estabelecido. Durante toda a internaçao, o paciente foi informado (dentro de seus limites de entendimento) sobre os procedimentos a que seria submetido; e chegou o momento da amputaçao dos dedos indicador, falange distal do dedo médio e dedo anelar. Neste momento, foi solicitada à família a presença de um acompanhante, que enviou um conhecido para exercer essa funçao.

Após a comunicaçao da necessidade da amputaçao dos dedos, o paciente começou a apresentar sintomas depressivos, tais como tristeza, perda do apetite, episódios de choro, pesar e dificuldade para dormir, que sao comuns em pacientes amputados. A partir desse momento, começou a se utilizar do mecanismo de defesa de negaçao, em relaçao à gravidade de seu quadro. Laplanche e Pontalis1 conceituam mecanismos de defesa como "diferentes tipos de operaçoes em que a defesa pode ser especificada. Os mecanismos predominantes diferem segundo o tipo de afecçao considerado, a etapa genética, o grau de elaboraçao do conflito defensivo, etc."

Esses mecanismos de defesa sao utilizados como estratégias defensivas frente à situaçao vivenciada, e englobam todas as formas que o ego utiliza para dominar, controlar e canalizar os perigos considerados internos ou externos a ele; ou seja, o sujeito se utiliza de tais mecanismos quando há intençao de diminuir a angústia dos seus conflitos interiores. O mecanismo de defesa mais presente no paciente, o de negaçao, aponta-nos exatamente para esta busca em diminuir o sofrimento, uma vez que tal mecanismo consiste em "negar o que é evidente. O sujeito transforma os fatos reais que lhe desagradam e recusa-se a reconhecê-los".

Exemplificando melhor essa utilizaçao da negaçao por esse paciente, logo após retornar do centro cirúrgico e ser informado da amputaçao dos dedos, ele trazia em seu discurso conteúdos de esperança de melhora dos dedos. Em relaçao à participaçao da família no tratamento, esta ficou reduzida às visitas ao paciente; parecia que a responsabilidade tinha sido transferida ao acompanhante. A preocupaçao com a possibilidade de amputaçao da mao persistia também na equipe. Com o passar dos dias, após avaliaçao da equipe da Cirurgia Vascular, constatou-se a impossibilidade da manutençao do antebraço direito.

Diante dessa situaçao, apresentou-se mais deprimido, choroso; contudo, na presença dos genitores, nao se queixava, parecia nao querer incomodá-los. O paciente vivenciava a dor da perda de forma solitária, compartilhando apenas com o acompanhante e com a equipe, tendo sido possível observar o quanto essa dor foi silenciada na presença dos genitores. Tornar possível falar sobre essa dor com os genitores foi importante. Mannoni2 nos fala deste processo: "Hoje nao se trata mais tanto de honrar os mortos, mas de proteger o vivo que se confronta com a morte dos seus". Os pais estavam muito mobilizados com a necessidade de amputaçao do membro.

A pessoa submetida a uma cirurgia sente-se fragilizada e emocionalmente instável, em decorrência da falta de controle da situaçao, da incerteza de como será a operaçao, de dúvidas sobre o pós-cirúrgico, do medo de sentir dor, de se tornar incapacitado, de morrer, da mutilaçao e fantasias sobre como ficará seu corpo.

E chegou o momento da amputaçao! Paciente apresentou-se algo deprimido, como era de se esperar de um sujeito que tenha sido submetido à amputaçao; é necessário elaborar o luto do membro perdido pela mutilaçao e aceitar essa perda física.

Para Freud3, "o luto, de modo geral, é a reaçao à perda de um ente querido à perda de alguma abstraçao que ocupou o lugar de um ente querido, como o país, a liberdade ou o ideal de alguém, e assim por diante". E segue, dizendo que "o luto normal é um processo longo e doloroso, que acaba por resolver-se por si só, quando o enlutado encontra objetos de substituiçao para o que foi perdido".

No mesmo sentido, o trabalho de luto se realiza, de forma que toda libido é retirada das ligaçoes com o objeto amado; a realidade mostra que esse objeto nao existe mais. Existe um período considerado necessário para a pessoa enlutada passar pela experiência da perda; o luto demanda tempo e energia para ser elaborado; é importante avaliar as condiçoes do enlutado, seus recursos para enfrentar a perda e as necessidades que podem se apresentar3. Para Mannoni2, "o trabalho de luto consiste, assim, num desinvestimento de um objeto, ao qual é mais difícil renunciar na medida em que uma parte de si mesmo se vê perdida nele".

Em meio a todo processo de elaboraçao da perda, com momentos em que sua fala remetia à possibilidade de "recuperaçao do membro perdido", ele me trouxe a seguinte questao, ao falar do membro perdido: "Vai crescer de novo?" (sic), ao que eu devolvi: "Vai crescer de novo?" Neste momento, ele chorou muito, e verbalizou sua dor, por saber que o antebraço nao se regeneraria, ou, usando sua linguagem "nao cresceria de novo".

A partir desse momento, o tema recorrente nas sessoes foi a questao da autoimagem corporal. O paciente verbalizava sua dor, seu medo em relaçao a "como as pessoas o olhariam; trazia o medo da rejeiçao, questionando "se os colegas iriam continuar brincando com ele; se poderia voltar a jogar futebol; andar de bicicleta; como iria frequentar a escola, escrever. A imagem corporal ficou muito comprometida.


DISCUSSAO

A imagem corporal constitui-se em referência a visao afetiva do rosto materno e das referências sensoriais repetidamente trazidas pela presença da mae4. Nesse sentido, é através do outro que a criança aprende a se reconhecer, isto implica em pensar em seu desejo, tal como seu corpo, nao é inicialmente vivido como seu, mas projetado e alienado no outro. A criança inicialmente é o desejo da mae. O corpo é falado, tecido a partir da relaçao com o Outro. Aquilo que se via era uma família muito fragilizada, sem conseguir falar, "olhar" aquele corpo marcado; servir de continente à dor, ao sofrimento do filho. Para Lacan5:

O processo de maturaçao fisiológica permite ao sujeito, num dado momento de sua história, integrar efetivamente suas funçoes motoras, e ascender a um domínio real do seu corpo. Só que é antes desse momento, embora de maneira correlativa, que o sujeito toma consciência do seu corpo como uma totalidade. É sobre isso que insisto na minha teoria do estádio do espelho - a só vista da forma total do corpo humano dá ao sujeito um domínio imaginário de seu corpo, prematuro em relaçao do domínio real5.


Para exemplificar o estádio do espelho, Lacan6 utilizou um experimento da ótica denominado o "experimento do buquê invertido", que consiste:

Em uma pequena caixa [que] esconde do observador o buquê de flores no seu interior. Pela intermediaçao de uma imagem real produzida por um espelho côncavo, o vaso vazio colocado sobre a caixa se encontra repleto de flores. O sucesso dessa experiência está em que o observador - contanto que se encontre no interior do cone desenhado pela difraçao de raios do espelho côncavo - percebe um vaso cheio de flores, sem desconfiar do fato de que se trata de uma montagem de um objeto real (o vaso) e de uma imagem: as flores6.


Em síntese, o Estádio do Espelho foi introduzido por Lacan para formalizar a maneira pela qual se dá a constituiçao do Eu. A criança, antes de possuir coordenaçao motora, reconhece-se no espelho. Entretanto, toda construçao da imagem corporal e da forma de experimentaçao do corpo fica abalada, face uma amputaçao. E com este paciente nao foi diferente: em um determinado momento, começou a apresentar "alucinaçao do membro fantasma", que, segundo Nasio7, pode ser entendido como:

Um distúrbio que afeta uma pessoa amputada de um braço ou perna. Ela sente de modo tao vivo as sensaçoes vindas do seu membro desaparecido, que lhe parece que este ainda existe (...) quando perdemos um braço, por exemplo, ou um ser querido a imagem psíquica (representaçao ou lembrança) desse objeto perdido é, por compensaçao, fortemente superinvestido. (...) esse superinvestimento afetivo da imagem, gera dor. Mas o grau superior desse superinvestimento provocará outra coisa além da dor: acarretará a alucinaçao da coisa perdida, cuja imagem é o reflexo7.


A alucinaçao pode ocorrer após uma perda insuportável, na qual a tentativa de negaçao da mesma se vale de um rompimento das relaçoes do eu com a realidade; seria como uma tentativa de trazer o objeto perdido de volta, via alucinaçao. Contudo, podemos pensar na alucinaçao do membro fantasma, com outra significaçao, que seria uma tentativa de elaboraçao da perda sofrida; um esforço para se elaborar o luto8. No decorrer dos atendimentos, o paciente foi entrando em contato com sua nova realidade corporal, vendo possibilidades (com alguma resistência) de usar o coto do membro amputado para suas atividades diárias. Finalmente, a entrada em cena da terapeuta ocupacional foi um dado significativo.


CONSIDERAÇOES FINAIS

Graças às leituras e pesquisas realizadas, visando à construçao deste trabalho, foi possível tentar estabelecer compreensao a respeito das indagaçoes de um adolescente vítima de amputaçao, de suas dificuldades em lidar com essa perda e sobre seu processo de elaboraçao do luto por meio de alguns conceitos psicanalíticos.


AGRADECIMENTO

A Clarice Gatto, pela orientaçao durante a execuçao desse trabalho.


REFERENCIAS

1. Laplanche J, Pontalis JB. Vocabulário da psicanálise. 4ª ed. Sao Paulo: Martins Fontes; 2001.

2. Mannoni M. O nomeável e o inominável. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 1995.

3. Freud S. Luto e melancolia. Ediçao standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud. vol. XIV. Imago: Rio de Janeiro; 1916.

4. Dolto F. No jogo do desejo: ensaios clínicos. Sao Paulo: Atica; 1996.

5. Lacan J. O estádio do espelho como formador da funçao do eu. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar;1998.

6. Lacan J. Observaçao sobre o relatório de Daniel Lagache: 'psicanálise e estrutura da personalidade'. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar;1998.

7. Nasio JD. A dor de amar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar;2007.

8. Dolto F. A imagem inconsciente do corpo. Sao Paulo: Perspectiva; 2002.










1. Psicóloga do Centro de Tratamento de Queimados (CTQ) do Hospital Fede-ral do Andaraí, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
2. Coordenadora pediátrica do CTQ do Hospital Federal do Andaraí, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
3. Médico; Chefe do CTQ do Hospital Federal do Andaraí, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

Correspondência:
Iole Dielle de Carvalho
Hospital Geral do Andaraí, Centro de Tratamento de Queimados
Rua Leopoldo, 280 - Andaraí
Rio de Janeiro, RJ, Brasil - CEP 20541-170
E-mail: idcarvalho@gmail.com

Artigo recebido: 11/8/2011
Artigo aceito: 16/10/2011

Trabalho de conclusao do curso de atualizaçao Fundamentos da Experiência Psicanalítica, apresentado para obtençao do título de atualizaçao na área de Saúde Pública. Trabalho realizado no Hospital Geral do Andaraí, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

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