1037
Visualizações
Acesso aberto Revisado por pares
Artigo Original

Comparação clínico-epidemiológica entre queimados submetidos a tratamento clínico e cirúrgico em serviço de referência de Brasília, nos anos de 2010 a 2019

Clinical-epidemiological comparison between burnt patients submitted to clinical and surgical treatment in a Brasília reference service, from 2010 to 2019

Aline Lamounier Gonçalves1; Natalia Mariana Diogenes Silva de Albuquerque2; Lucas Andrade Fidalgo Cunha3; Carolina Carvalho Guimarães Monteiro4; Tarquino Erastides Sanchez5; Mario Frattini Gonçalves Dias6; Juliana Elvira Herdy Guerra Avila7; José Adorno8

RESUMO

OBJETIVO: Traçar e comparar o perfil epidemiológico dos pacientes internados, entre 2010 e 2019, na Unidade de Queimados do Hospital Regional da Asa Norte, Brasília-DF que receberam suporte clínico e suporte clínico e cirúrgico, e correlacionar possíveis fatores de risco para o surgimento de infecção secundária.
MÉTODOS: Estudo analítico, retrospectivo e transversal dos pacientes internados na Unidade de Queimados do Hospital Regional da Asa Norte, entre janeiro de 2010 e dezembro de 2019.
RESULTADOS: Dos 2026 pacientes queimados, 734 (36%) realizaram apenas tratamento clínico e 1292 (63%) receberam tratamento clínico e cirúrgico. As crianças, de 0 a 9 anos, foram as que mais receberam apenas tratamento clínico e os adultos, de 20 a 39 anos, os que mais receberam tratamento clínico e cirúrgico. O principal agente foi chama e fogo (55%). Desenvolveram infecção secundária 73% dos paciente submetidos à cirurgia, tendo etilismo (p=0,0014), drogadição (p=0,02) e situação de rua (p=0,004) como fatores de risco. Dos que receberam apenas tratamento clínico, 30,6% tiveram infecção, com hipertensão arterial (p=0,008) e diabetes mellitus (p=0,005) como fatores de risco.
CONCLUSÃO: Homens de 20-39 anos foram o principal grupo submetido a tratamento cirúrgico, possivelmente devido a suas atividades laborais, as quais os expõem a situações de risco para queimaduras complexas, além de hábitos de risco como etilismo. As crianças foram as mais acometidas no grupo clínico por serem mais susceptíveis a acidentes domésticos, devido à sua natureza curiosa, imaturidade cognitiva e física.

Palavras-chave: Unidades de Queimados. Epidemiologia. Cirurgia Plástica. Queimaduras.

ABSTRACT

OBJECTIVE: To trace and to compare the epidemiological profile of patients hospitalized between 2010 and 2019 at the Burn Unit of the Regional Hospital of Asa Norte, Brasília-DF who received clinical and clinical and surgical support, and correlate possible risk factors for development secondary infection.
METHODS: It is an analytical, retrospective and cross-sectional study of patients admitted to the Burn Unit of the Regional Hospital of Asa Norte between January 2010 and December 2019.
RESULTS: There were 2026 burned patients, 734 (36%) underwent only clinical treatment and 1292 (63.7%) received clinical and surgical treatment. Children aged 0-9 years were the ones who mort received clinical treatment and adults aged 20-39 years were those who most received clinical and surgical treatment. The main agent was flame and fire (55.2%). Secondary infection were developed by 73.2% of patients who underwent surgery, with alcoholism (p=0.0014),, drug addiction (p=0.02) and homelessness (p=0.004) as risk factors. Of those who received only clinical treatment, 30.6% had infection, with arterial hypertension (p=0.008) and diabetes mellitus (p=0.005) as risk factors.
CONCLUSION: Men aged 20-39 years were the main group undergoing surgical treatment, possibly due their work activities, which expose them to risk situations for complex burns, and risky habits such as alcoholism. Children were the most affected in the clinical group because they are more susceptible to domestic accidents, due to their curious nature, cognitive and physical immaturity.

Keywords: Burn Units. Epidemiology. Surgery, Plastic. Burns.

INTRODUÇÃO

As queimaduras podem ser definidas como traumas nos tecidos orgânicos ou na pele causados por transferência aguda de energia (térmica, elétrica, radiação). Cursam em âmbito local com hiperemia, estase, necrose (autofagia, apoptose, morte celular), além de resposta inflamatória sistêmica, a fim de reparar e frear os danos locais1.

Representam um problema de saúde pública global, tanto devido a sua mortalidade quanto devido a sua morbidade, que inclui incapacidade física, danos psicológicos e sociais. A maioria das queimaduras ocorre em países de média e baixa renda, tendo como principais locais de acidente o domicílio e o trabalho2,3.

Estima-se que no mundo há mais de 11.000.000 de novos casos e 180.000 mortes por ano, sendo que no Brasil ocorrem anualmente cerca de 1.000.000 de incidentes. Destes, 100.000 resultam em atendimentos hospitalar e aproximadamente 2500 vão a óbito, direta ou indiretamente em função de suas lesões2,3.

O tratamento das queimaduras pode ser conservador, com o uso de curativos com agentes tópicos (principamente à base de prata por sua ação bacteriostática), ou cirúrgico, sendo que os principais procedimentos realizados são: desbridamento, fasciotomia, escarotomia e enxerto de pele. O papel do tratamento cirúrgico baseia-se na revitalização de áreas necróticas, preservação de órgãos vitais, prevenção de infecções de ferida e melhora nas funções motora e estética das áreas acometidas4.

As infecções representam a principal causa de mortalidade nos pacientes queimados, podendo evoluir para sepse, complicação associada a elevada morbimortalidade. Seu manejo apresenta desafios peculiares no que tange à detecção e tratamento precoce, uma vez que a identificação é dificultada pela supressão imunológica e resposta inflamatória sistêmica presente nesses pacientes5.

Padua at al.6 apontam que o conhecimento da epidemiologia das queimaduras, por meio de pesquisa em instituições terciárias, é fundamental para que os órgãos responsáveis possam criar métodos de prevenção mais eficazes com base no estudo da população local.

Ademais, essa descrição epidemiológica também auxilia as instituições encarregadas pelos investimentos em saúde a analisar a correta necessidade de leitos por região, tempo de internação, taxa de infecção, mortalidade, uso de antibióticos, de substitutos temporários de pele, entre outros. Isso contribui para a melhoria do planejamento administrativo7.

O objetivo do estudo é traçar e comparar o perfil epidemiológico dos pacientes internados no período compreendido entre janeiro de 2010 a dezembro de 2019 na Unidade de Queimados do Hospital Regional da Asa Norte (UQ - HRAN), em Brasília, DF, considerando aqueles que receberam apenas suporte clínico e os que receberam suporte clínico e cirúrgico, bem como correlacionar possíveis fatores de risco para o surgimento de infecção secundária.


MÉTODOS

Trata-se de estudo analítico, retrospectivo e transversal, realizado na UQ - HRAN, referência no atendimento a queimaduras no Distrito Federal e da Região Centro-Oeste. Foram incluídos todos os pacientes internados de 1 de janeiro de 2010 até 31 de dezembro de 2019, de ambos os sexos e todas as idades, considerando os critérios de internação da Unidade. Todos os dados foram obtidos a partir da ficha de alta padronizada no serviço.

Os critérios de internação utilizados na Unidade são os seguintes: crianças e adultos com queimadura de espessura parcial maior ou igual a 1 0% da superfície corporal (SC) ou de espessura total maior ou igual a 2% da SC; queimaduras em mãos, pés, face, genitália, períneo e/ou articulações importantes; queimaduras especiais, ou seja, elétricas, químicas, em ambientes fechados com inalação de fumaça, queimaduras circunferenciais de extremidades; além de queimaduras em idosos, lactentes e portadores de comorbidades (doença renal crônica, diabetes mellitus, etc).

Para a seleção dos pacientes, foram analisados todos os indivíduos internados nos últimos 10 anos, o que resultou em 2461 pacientes. Destes, foram excluídos 435, sendo 57 por não possuírem dados acessíveis, 94 por transferência de ou para outros serviços, 252 por reinternação, 28 por internação devido a outras afecções cutâneas e quatro por terem abandonado o serviço. Assim, 2026 pacientes foram incluídos no estudo, sendo em seguida agrupados em dois grupos: 1) os que realizaram apenas tratamento clínico e 2) os que receberam tratamento clínico e cirúrgico.

A partir das fichas de alta, foram avaliados dados referentes a: idade, procedência, presença de comorbidades, tempo de internação e características gerais das queimaduras. A citar: o agente etiológico, a topografia, a extensão da lesão, a profundidade, a presença de infecção secundária, os antibióticos usados e por quanto tempo, o tratamento cirúrgico adotado, a ocorrência de sepse e o desfecho clínico (alta hospitalar ou óbito).

As causas das queimaduras foram categorizadas em grupos segundo a classificação proposta por Sabiston: chama e fogo, escaldadura, contato, químicas e eletricidade8.

Os dados foram organizados e analisados com o auxílio do software Microsoft Office Excel® versão 20 1 8 com o uso de frequência simples e porcentagem. Foi realizado o método de regressão linear simples, utilizando o Teste Qui-quadrado de Pearson, para estimar fatores de risco para desenvolvimento de infecção secundária, com o programa SPSS v.23. O valor da significância adotado foi de 5%. Posteriormente, os resultados foram comparados com a literatura disponível, pesquisada nas bases de dados Scientific Electronic Library Online (SciELO), Pub-Med e Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (Lilacs).

Os dados foram colhidos após aprovação do protocolo de pesquisa pelo Comitê de Ética do Centro Universitário de Brasília (UNI-CEUB), sob número de protocolo 28305620.4.0000.0023.


RESULTADOS

Dos 2026 pacientes incluídos no estudo, 734 (36,2%) realizaram apenas tratamento clínico (primeiro grupo), e 1292 (63,7%) receberam tratamento clínico e cirúrgico (segundo grupo).

Em relação às características epidemiológicas (Tabela 1): o primeiro grupo foi composto em sua maioria por homens (63,8%), a idade média foi 26,1 anos (DP±25,3), as crianças entre 0-9 anos (34,5%) foram as mais acometidas, seguidas pelos adultos de 20-39 anos (28,8%). O tipo de incidente mais comum foi o doméstico (75,6%), seguido pelo de trabalho (12,2%). Em relação ao agente causal, o grupo chama e fogo (46,7%) foi o principal, seguido pela escaldadura (37,3%).




Ao ser analisado o segundo grupo, foi observado também predomínio do sexo masculino (63%), com idade média de 32,5 anos (DP±19,3), os adultos de 20-39 anos (38,1%) foram os mais acometidos, seguidos pelos de 40-59 anos (26,4%). O tipo de incidente mais comum também foi o doméstico (63,2%), seguido pelo de trabalho (13,6%). Porém, neste grupo houve maior frequência de eventos de natureza criminosa, sendo 13 1 casos (10,1%) versus 40 casos (5,4%) do primeiro grupo. Os principais agentes causais neste grupo também foram chama e fogo (60%) e escaldadura (17,1 %).

Ao ser avaliada a procedência dos pacientes, foi observada semelhança entre os grupos: 98,2% (n=1990) de todos os pacientes eram do Distrito Federal, de Goiás ou de Minas Gerais. No primeiro grupo, 65,6% (n=482) eram do Distrito Federal, 29,5% (n=217) de Goiás e 3,1% (n=23) de Minas Gerais. Enquanto no segundo, 62,7% (n=811) eram do Distrito Federal, 29,9% (n = 387) de Goiás e 4,8% (n=63) de Minas Gerais.

No que diz respeito ao número de casos internados por mês (Gráfico 1), considerando os dois grupos (n=2026), o mês com mais internações foi setembro, com 199 internações





(9,8%), seguido por dezembro, com 195 (9,6%), e agosto, com 1 92 (9,4%). Ao avaliar a incidência apenas no grupo submetido ao tratamento cirúrgico, o mês com mais internações foi agosto, com 124 (9,5%), seguido por setembro, com 122 (9,4%), e dezembro, com 121 (9,3%).

No tangente à profundidade e à área corporal queimada (Tabela 2), no primeiro grupo as queimaduras de espessura parcial superficial e profunda (53,9%) foram as mais comuns, seguidas pelas queimaduras apenas parciais superficiais (24,8%). As áreas corporais mais acometidas foram a face (40,5%), seguida pelo tronco (38,6%) e o membro superior direito (35,6%). Já no segundo grupo, as queimaduras de espessura parcial superficial e profunda (43,6%) também foram as mais comuns, seguidas pelas parciais superficiais, profundas e totais (15,1%). O membro superior direito foi a área corporal mais acometida (45,8%), seguido pelo tronco (43,4%) e o membro inferior direito (38,1%).





No escopo da superfície corporal queimada, a média no primeiro grupo foi de 1 0,7% (DP± 1 3,2), sendo a menor inferior a 1% e a maior 98%, e, no segundo grupo, foi de 1 6,4% (DP± 1 6,5), sendo a menor 1% e a maior 92%.

Ao se observar a presença de comorbidades entre os grupos (Tabela 3), 44,8% do primeiro grupo possuía pelo menos uma, versus 44,5% no segundo grupo. As mais prevalentes em ambos os grupos foram etilismo (10,7% e 17,8%) e tabagismo (9,9% e 16%), respectivamente.





No primeiro grupo houve correlação entre hipertensão arterial (p=0,008) e diabetes mellitus (p=0,005), com o desenvolvimento de infecção secundária. Por sua vez, no segundo grupo houve correlação de etilismo (p=0,00 1 4), drogadição (p=0,02) e situação de rua (p=0,004), com desenvolvimento mais frequente de infecção secundária.

Mais de um procedimento cirúrgico foi realizado em 65% dos pacientes do segundo grupo, tendo como média 1,64 intervenções por paciente. Os dois procedimentos mais executados (Tabela 4) foram o desbridamento e o autoenxerto, executados em 94,1% e 65,1% dos pacientes, respectivamente. Ao se correlacionar a incidência de infecção secundária, nestes se encontrou para os dois o p=0,000.





Ao todo, 946 pacientes (73,2%) do segundo grupo desenvolveram infecção secundária, sendo que 80,8% destes utilizaram Ampicilina com Sulbactam como primeira escolha de antibiótico, de acordo com o protocolo da UQ - HRAN, com duração de 7-14 dias em 50,2% das prescrições, seguida por duração de até 7 dias (37,7%).

Já no primeiro grupo, 2 1 7 pacientes (30,6%) tiveram infecção secundária. Destes 72,3% utilizaram Ampicilina com Sulbactam como primeira escolha, com duração de até 7 dias em 70,5% das prescrições, seguida por duração de 7-14 dias (22,1 %).

No primeiro grupo, o tempo médio de internação foi de 5,8 dias (DP±6,6), sendo a menor duração de 1 dia e a maior de 93 dias. No segundo grupo, o tempo médio foi de 20,2 dias (DP± 1 7,5), com menor de 1 dia e maior de 1 77 dias.

O número de óbitos em toda a casuística (Tabela 1) foi de 103 pacientes (5,08%), sendo 67,9% do sexo masculino e 32% do sexo feminino. Trinta e três óbitos ocorreram no primeiro grupo, correspondendo a 1,6% de toda a amostra e a 4,4% dos pacientes desse grupo. No segundo ocorreram 70 óbitos, 3,4% de toda a amostra e 5,4% dos pacientes do respectivo grupo. Em ambos os grupos, houve prevalência de óbitos no sexo masculino, 69,6% e 67,1%, respectivamente. O p-valor não foi significativo para correlação óbito e sexo (p=0,34), nem óbito e tratamento cirúrgico (p=0,07). Dos pacientes que foram a óbito, 47,5% tiveram como causa sepse.


DISCUSSÃO

A queimadura é um trauma grave, com impactos sociais, econômicos e na saúde pública, devidos não apenas ao tempo de tratamento hospitalar prolongado e doloroso, mas também à reabilitação, aos afastamentos e às aposentadorias9.

Em nosso estudo, observou-se maior ocorrência de acidentes no sexo masculino, principalmente em ambiente doméstico, em concordância com a literatura6,7,10. Também houve prevalência de pacientes internados submetidos a procedimento cirúrgicos, em comparação aos que receberam apenas tratamento clínico.

Os adultos, entre 20-49 anos, foram os mais prevalentes no grupo submetido a tratamento clínico e cirúrgico, tendo como principal agente causal chama e fogo, sofrendo, principalmente, queimaduras de espessura parcial superficial e profunda, seguida pela parcial superficial, profunda e total. Um dos fatores relacionados à necessidade de procedimento cirúrgico é a profundidade da lesão, pois nas parciais profundas e totais ocorre prejuízo na capacidade de reepitelização local espontânea, fazendo-se necessária a intervenção cirúrgica11.

Dessa forma, a prevalência dessa faixa de idade no grupo cirúrgico está possivelmente relacionada à natureza de suas atividades laborais, assim como maior exposição a fatores de risco, como manuseio de rede de eletricidade, metais superaquecidos e líquidos inflamáveis7, pois esses agentes são capazes de liberar grandes quantidades de energia na forma de calor. Isso causa dano celular irreversível e consequente morte de tecidos, por provocar coagulação do protoplasma celular, em todas as camadas da derme, causando queimaduras mais profundas1.

Também danifica ou destrói o plexo vascular local, tornando a cicatrização demorada ou impossibilitada de ocorrer, aumentando o risco de infecção e desenvolvimento de cicatrizes patológicas11. Faz-se, então, necessário o procedimento cirúrgico.

Os procedimentos cirúrgicos mais realizados foram o desbridamento e autoenxerto, que possuem grande importância no prognóstico dos pacientes, pois, além de contribuírem na promoção da reepitelização local, auxiliam na prevenção de sepse, diminuem a inflamação sistêmica, as respostas metabólica e imunológica, além da taxa de morbimortalidade, por impedir a perda de água, eletrólitos e proteínas4,8. Em outros estudos analisados, também houve prevalência de realização desses dois procedimentos7,12.

Já no grupo submetido apenas ao tratamento clínico, houve maior acometimento das crianças de 0 a 9 anos, sendo o principal agente causal escaldadura, ocorrendo principalmente queimaduras de profundidade parcial superficial e profunda, seguidas pela parcial superficial. Nesse padrão de profundidade, ocorre apenas destruição da derme superficial, com menor dano tecidual e menor ocorrência de morte celular, sendo preservada a capacidade de reepitelização espontânea, não necessitando intervenção cirúrgica11.

Aponta-se que, devido à natureza curiosa da criança, além de sua imaturidade física e cognitiva, elas são mais susceptíveis à ocorrência de acidentes, dependendo de intensa vigilância dos responsáveis para sua prevenção13.

Apesar de a escaldadura corresponder ao principal agente na maioria dos estudos6,7,9,12 na UQ - HRAN, o principal agente foi chama e fogo, corroborando com alguns estudos14,15. Essa divergência pode ser explicada pela existência de um ambulatório para pacientes agudos no serviço, que funciona diariamente e é porta aberta. Dessa forma, muitos pacientes são acompanhados a nível ambulatorial, o que também poderia justificar a maior porcentagem de pacientes internados submetidos a procedimento cirúrgico.

Outra justificativa para essa diferença é alta complexidade dos tratamentos realizados na Unidade, além dela possuir seu próprio centro cirúrgico, com equipe de anestesiologista específica.

Em relação aos fatores de risco associados ao desenvolvimento da infecção secundária, observou-se que a diabetes mellitus e a hipertensão arterial foram fatores estatisticamente significativos no primeiro grupo. Os diabéticos possuem características moleculares e celulares relacionadas ao processo de cicatrização que o dificultam. A citar: neuropatia, resposta inflamatória não fisiológica, estresse oxidativo, desbalanço entre metabolismo e entrega de nutrientes, concentrações inadequadas de fatores de crescimento e anormalidades celulares. Dessa forma, o processo é mais prolongado e menos eficaz, aumentando o risco de infecções secundárias16.

Por sua vez, na hipertensão arterial, devido à doença microvascular, ocorre diminuição significativa no transporte de sangue para o local da lesão, prejudicando a atividade inflamatória, a síntese tecidual oxigênio-dependente, retardando o processo de reparo tecidual, aumentando o risco de infecção. Além disso, a disfunção vascular também afeta o transporte de antibióticos ao local da lesão, afetando a resposta anti-inflamatória17.

Já no segundo grupo, os fatores de risco associados foram o etilismo, drogadição e situação de rua, que influenciam muito a situação alimentar e nutricional da pessoa.

A dependência de substâncias influencia consideravelmente a alimentação e nutrição do usuário, tanto por afetar o apetite, a ingestão adequada de nutrientes e estado nutricional quanto pelo componente social, afetando seus hábitos alimentares e autocuidado. O mesmo aplica-se para a população em situação de rua, que se encontra em estado de vulnerabilidade social, vivendo em extrema pobreza, impossibilitando seu autocuidado18.

Nesse escopo, o desenvolvimento de infecção secundária nesse grupo está relacionada à disfunção associada ao seu processo cicatricial, tendo em vista que ele depende do estado nutricional da pessoa, uma vez que a resposta fibroblástica é prejudicada pela deficiência energético proteica, lentificando a cicatrização das feridas. Além disso, a falta nutricional reduz a angiogênese e a falta de vitaminas do complexo B, como ocorre no etilismo, afeta a função linfocitária, prejudicando a produção de anticorpos19.

Não foram encontrados trabalhos analíticos na literatura que abordam os fatores de risco da mesma forma feita nesse estudo, impossibilitando a comparação dos dados.

A maior incidência de infecção secundária, no grupo cirúrgico, está relacionada à maior gravidade das queimaduras desse grupo, à realização de mais procedimentos invasivos, além da utilização de enxertos de pele. Situações que aumentam o risco de colonização da região lesionada por agentes oportunistas20.

Os meses com maior número de internações na unidade foram agosto e dezembro, sendo dezembro o único em comum com outros estudos9,10,12, provavelmente relacionado às festas de fim de ano, às férias e ao verão. Pode-se associar essa discrepância de incidência às diferenças culturais entre regiões, às suas peculiaridades de comemoração das datas festivas e clima. Tendo em vista que os meses de agosto e setembro correspondem ao período de seca extrema e de maiores temperaturas no Distrito Federal, aumentando o risco de formar chamas no Cerrado, além de aumentar o poder de combustão de materiais inflamáveis.

A taxa de óbito de 5% descrita está de acordo com a variação da taxa de mortalidade encontrada nos outros serviços, de 4,1%6 e 5,2%10. O sexo masculino corresponde a 67,9% dos óbitos, valor similar ao encontrado em outro estudo14, possivelmente relacionado à maior porcentagem de pacientes homens internados e da maior complexidade e gravidade de suas queimaduras.


CONCLUSÃO

Os homens foram os mais acometidos em ambos os grupos, sendo os adultos, de 20 a 39 anos, o principal grupo submetido a tratamento cirúrgico, possivelmente relacionado a suas atividades laborais, que os expõem a situações de risco para queimaduras mais profundas e complexas. A quantidade de infecção secundária foi maior no grupo cirúrgico do que no grupo apenas clínico, no qual houve maior acometimento de crianças de 0 a 9 anos, por escaldadura, que origina queimaduras mais superficiais, permitindo a reepitelização espontânea.

As comorbidades, associadas à infecção secundária, apontam a diferenciação das idades de cada grupo, pois no grupo cirúrgico, no qual há prevalência de adulto jovem, o etilismo, drogadição e situação de rua foram as mais prevalentes. Já no primeiro grupo, no qual há prevalência dos extremos de idade, foram a hipertensão arterial e diabetes mellitus.

A partir do exposto, percebe-se a diferença entre o perfil do paciente que necessita ser submetido a procedimento cirúrgico, pela maior gravidade da sua queimadura, do paciente com queimaduras menos graves. Isso possibilita o direcionamento de políticas educativas, tanto aos trabalhadores expostos a situações de maiores riscos a queimaduras graves quanto aos cuidadores das crianças.


REFERÊNCIAS

1. Moctezuma-Paz LE, Páez-Franco I, Jiménez-González S, Miguel-Jaimes KD, Foncerra-da-Ortega G, Sánchez-Flores AY, et al. Epidemiología de las quemaduras en México. Rev Esp Méd Quir. 2015;20:78-82.

2. World Health Organization (WHO). Burns [acesso 2020 Mar 5]. Disponível em: http://www.who.int/mediacentre/factsheets/fs365/en/

3. Brasil. Ministério da Saúde. Queimados. Brasília: Ministério da Saúde; 2017 [acesso 2020 Mar 5]. Disponível em https://www.saude.gov.br/component/content/article/842-queimados/40990-queimados

4. Possamai L, Bruxel CL, Pires FS, Silva JB. Queimaduras - manejo cirúrgico. Biblioteca Virtual de Saúde; 2018 [acesso 2020 Mar 5]. Disponível em: http://docs.bvsalud.org/biblioref/2018/02/879485/queimaduras-manejo-cirurgico.pdf

5. Church D, Elsayed S, Reid O, Winston B, Lindsay R. Burn wound infections. Clin Micro-biol Rev. 2016;19(2):403-34.

6. Padua GAC, Nascimento JM, Quadrado ALD, Perrone RP Silva Junior SC. Epide-miologia dos pacientes vítimas de queimaduras internados no Serviço de Cirurgia Plástica e Queimados da Santa Casa de Misericórdia de Santos. Rev Bras Cir Plást. 2017;32(4):550-5.

7. Lacerda LA, Carneiro AC, Oliveira AF, Gragnani A, Ferreira LM. Estudo epidemiológico da Unidade de Tratamento de Queimaduras da Universidade Federal de São Paulo. Rev Bras Queimaduras. 2010;9(3):82-8.

8. Townsend CM, Beauchamp RD, Evers BM. Sabiston tratado de cirurgia. Rio de Janeiro: Elsevier; 2015.

9. Soares LR, Barbosa FS, Santos LA, Mattos VCR, De Paula CA, Leal PML, et al. Estudo epidemiológico de vítimas de queimaduras internadas em um hospital de urgência da Bahia. Rev Bras Queimaduras. 2016;15(3):148-52.

10. Santa Maria FHO, Antão KL, Pinheiro MS, Santos TS, Guimarães MN, Oliveira IF et al. Perfil de vítimas de queimaduras atendidas num hospital geral de uma capital do nordeste brasileiro 2011 - 2015. Rev Eletrônica Acervo Saúde. 2019;32:e1211.

11. Nazário NO, Leonardi DF, Nitschke CAS, orgs. Módulo Eventos agudos em situações clinicas: Queimaduras. Florianópolis: UNA-SUS/Universidade Federal de Santa Catarina; 2014.

12. Zaruz MJF, Lima FM, Daibert EF, Andrade AO. Queimaduras no Triângulo Mineiro (Brasil): estudo epidemiológico de uma unidade de queimados. Rev Bras Queimaduras. 2016;15(2):97-103.

13. Gurgel AKC, Monteiro AI. Prevenção de acidentes domésticos infantis: susceptibilidade percebida pelas cuidadoras. J Res Fund Care Online. 2016;8(4):5126-35.

14. Dutra JPS, Custódio SR, Piccolo N, Daher RP. Estudo clínico-epidemiológico de pacientes queimados internados em uma unidade de terapia intensiva em Goiás. Rev Bras Queimaduras. 2017;16(2):87-93.

15. Lami FH, Al Naser RK. Epidemiological characteristics of burn injuries in Iraq: A burn hospital-based study. Burns. 2019;45(2):479-83.

16. Andrade MGL, Camelo CN, Carneiro JA, Tarêncio KP. Evidências de alterações do processo de cicatrização de queimaduras em indivíduos diabéticos: revisão bibliográfica. Rev Bras Queimaduras. 2013;12(1):42-8.

17. Biondo-Simões MLP, Alcantara EM, Dallagnol JC, Yoshizumi KO, Torres LFB, Borsa-to KS. Cicatrização de feridas: estudo comparativo em ratos hipertensos não tratados e tratados com inibidor da enzima conversora da angiotensina. Rev Col Bras Cir. 2006;33(2):74-8.

18. Ribeiro DR, Carvalho DS. Associação entre o estado nutricional e padrões de uso de drogas em pacientes atendidos em Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas. SMAD Rev Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. 2016;12(2):92-100.

19. MacKay D, Miller AL. Nutritional support for wound healing. Altern Med Rev. 2003;8(4):359-77.

20. Munier AL, Biard L, Legrand M, Rousseau C, Lafaurie M, Donay JL, et al. Incidence, risk factors and outcome of multi-drug resistant Acinetobacter baumannii nosocomial infections during an outbreak in a burn unit. Int J Infect Dis. 2019;79:179-84.









Recebido em 24 de Maio de 2020.
Aceito em 27 de Agosto de 2020.

Local de realização do trabalho: Hospital Regional da Asa Norte (Hran), Brasília, DF, Brasil.

Conflito de interesses: Os autores declaram não haver.


© 2024 Todos os Direitos Reservados