RESUMO
INTRODUÇAO: As queimaduras estao entre as mais graves lesoes suportáveis, nao só pela dor, mas pela possibilidade de choques hipovolêmico e séptico proporcionais à extensao e profundidade da área atingida. A sobrevida em pacientes com superfície corporal queimada maior que 30% é pequena e extremamente pequena em 70%.
RELATO DE CASO: L.A.C., 13 anos, admitido com queimadura por etanol decorrente de explosao em ambiente aberto, com 60% da superfície corporal queimada, lesoes de 2º grau profundo e 3º grau em face, pescoço, tórax, abdome, dorso, membros superiores, membros inferiores e genitais, com lesao inalatória. Realizou-se reposiçao volêmica imediata, intubaçao orotraqueal precoce associada à ventilaçao mecânica, desbridamentos cirúrgicos, curativos diários, analgesia eficaz, somadas ao suporte nutricional com altas taxas calóricas e proteicas, além do agressivo tratamento da sepse. Alta hospitalar após 3 meses e 7 dias, deambulando, com funçao renal preservada, sem área queimada exposta e com sequela funcional motora.
CONCLUSAO: A conduta precoce é extremamente importante para a sobrevida, visto que esse tipo de lesao tem um alto índice de mortalidade e complexidade. O bom resultado deve-se ao aporte clínico, cirúrgico, sendo que os primeiros cuidados, após o atendimento de emergência, ocorreram no hospital que oferece os serviços de referências para queimados em Mato Grosso do Sul.
Palavras-chave:
Queimaduras. Lesão por Inalação de Fumaça. Adolescente. Sobrevida.
ABSTRACT
INTRODUCTION: Burns are among the most serious injuries that the body can withstand, not only for the pain, but also for the possibility of hypovolemic and septic shock proportional to the length and depth of the affected area. Survival in patients with surface body area burned more than 30% is small, and extremely small at 70%.
CASE REPORT: L.A.C., 13 years-old, admitted due to burn of ethanol in an open environment explosion, with 60% of total burned surface area, 2nd and 3rd degree lesions in the face, neck, chest, abdomen, back, upper limbs, lower limbs and genitals with inhalation injury. Submitted to immediate volume replacement, early intubation associated with mechanical ventilation, surgical debridement, daily bandages, effective analgesia, added nutritional support with high calorie and protein rates, in addition to aggressive treatment of sepsis. Discharged after 3 months and 7 days, ambulating with preserved renal function, without exposed burned area and with motor functional sequel.
CONCLUSION: Early conduct is extremely important for the survival, as this type of injury has a high mortality rate and complexity. The good results were due to the clinical and surgical support, and because the first care, after emergency care, occurred in the hospital that offers the reference service to burns in Mato Grosso do Sul.
Keywords:
Burns. Smoke Inhalation Injury. Adolescent. Survivorship (Public Health).
INTRODUÇAOAs queimaduras estao entre as mais graves lesoes que o organismo pode suportar, nao só pela dor excruciante, mas pela possibilidade de choques hipovolêmico e séptico proporcionais à extensao e profundidade da área atingida. Estatisticamente, a taxa de sobrevida de um paciente vítima de um trauma térmico nao está bem documentada no Brasil, onde se observa uma tendência a supervalorizar a área queimada. Atribuímos esse fato à desinformaçao e à nao utilizaçao do critério internacional (Diagrama de Lund-Browder)
1.
Existem vários estudos sobre a sobrevida de grandes queimados ao redor do mundo, que mostraram resultados diversos, apontando a grande diferença que a qualidade do atendimento inicial e tratamento adequado podem fazer. Em um estudo publicado na revista da Sociedade Internacional de Queimaduras, com 3.499 pacientes, com idade variando de três semanas a 90 anos, internados em sete diferentes hospitais na India, nao houve relato de sobrevida em pacientes com superfície corporal queimada maior que 60%. Em um dos hospitais, nao ocorreu sobrevida com área sequer superior a 30%
2. Em outro extremo, a Estatística da Permuta Nacional de Informaçoes sobre Queimaduras nos Estados Unidos (EUA) - 1985 mostra que a sobrevida de um adulto com superfície corporal queimada de 85% variou de 0% a 5%
3.
Na China, um estudo de 12 anos de duraçao (1997 - 2009) analisou queimaduras extensas de mais de 70% de área queimada em 103 pacientes, em Xangai. Destes, 71,8% possuíam lesao inalatória. Os resultados mostraram que 75,7% apresentaram complicaçoes, das quais 49,5% eram referentes ao sistema respiratório. A mortalidade foi de 28,2%, principalmente devido à sepse e falência múltipla de órgaos
4.
Outro estudo com 952 pacientes queimados nos EUA, na faixa etária pediátrica, com duraçao de 10 anos, concluiu que a área corporal queimada acima de 60% é o ponto crucial para o aumento da mortalidade e morbidade em crianças, devendo ser transferidas para centros especializados em queimaduras imediatamente, nos quais devem ser fortemente monitoradas e rapidamente tratadas
5.
Algumas publicaçoes sugeriram que a taxa de sobrevida chega a 50% em jovens adultos com superfície corporal queimada de 80%, sem lesao inalatória. Dados norte-americanos recentes indicam 69% de mortalidade em paciente com queimaduras superiores a 70% de área corporal queimada
6.
A semelhança entre os estudos em grandes queimados está na importância do tratamento correto e imediato, que possui alta complexidade, visto que é multidisciplinar, envolvendo cuidados intensivos em unidades de tratamento intensivo (UTI), cirurgias plásticas e fisioterapia. A causa mais comum de morte foi a sepse seguida de falência múltipla de órgaos. Isso mostra a importância do manejo adequado no tratamento do grande queimado, principalmente nas crianças a partir de 60% da área corpórea queimada.
Este estudo tem por objetivo relatar o caso de um menino de 13 anos que sobreviveu a uma queimadura superior a 60% da superfície corporal. Portanto, o paciente atingiu o marco de superfície corporal queimada, na qual a mortalidade e morbidade elevamse substancialmente. É relevante conhecer o tratamento realizado, visto que houve sobrevida após um ano do acidente, mostrando a eficácia do tratamento ao qual o paciente foi submetido.
RELATO DE CASOPaciente L.A.C., do sexo masculino, 13 anos de idade, estudante do ensino fundamental, procurou atendimento de urgência na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) universitário de Campo Grande, MS, no dia 18 de dezembro de 2015, após sofrer queimadura grave em um acidente envolvendo uma explosao ao queimar lixo molhado, contendo livros, com etanol. Após o acidente, o paciente procurou imediatamente a UPA, e foi encaminhado ao atendimento de urgência, onde foi garantida via aérea definitiva (intubaçao orotraqueal) e ressuscitaçao com Ringer Lactato 4500 ml., sendo admitido no serviço da Santa Casa/Associaçao Beneficente de Campo Grande, MS, às 4:30 horas (9 h após o acidente).
Ao exame físico, foi constatada, aproximadamente, 60% de superfície corporal queimada (SCQ), calculada pela regra dos noves - Wallace (para superfície queimada em adultos e crianças a partir de 10 anos de idade), com queimaduras de segundo grau profundo e terceiro grau em membros inferiores, regiao genital, tórax, dorso, pescoço, membros superiores e face.
Apresentou opacidade em olho direito e edema palpebral bilateral. Aparelho respiratório com roncos presentes à ausculta pulmonar, frequência respiratória de 15 rpm. Aparelho cardiocirculatório com frequência cardíaca de 96 bpm, ritmo regular. Abdome flácido com ruídos presentes. Diurese presente. Extremidades com perfusao diminuída, frias e pulsos filiformes. Sem uso de antibiótico até o momento. Previamente saudável, acompanhante negava afecçoes associadas.
Cuidados ImediatosNa admissao foi administrado Ringer Lactato 375 ml/h até as 16h, sedaçao com midazolam 10 ml/h e analgesia com fentanil 10 ml/h, ranitidina EV 12/12h, albumina humana 20% duas ampolas de 50 ml, passagem de sonda nasogástrica aberta, passagem de cateter central triplo lúmen, fisioterapia respiratória e motora, monitorizaçao cardíaca, oximetria de pulso e monitorizaçao da pressao arterial média (PAM).
O paciente foi mantido em intubaçao orotraqueal e ventilaçao mecânica por 10 dias, em modalidade ventilaçao por pressao controlada (PCV) em modo assistido controlado (A/C). Foram solicitados os seguintes exames: gasometria arterial, hemograma completo, glicose, sódio, potássio, ureia e creatinina. Profilaxia para tétano e trombose venosa profunda, com clexane 20 mg e internaçao em centro de tratamento intensivo (CTI).
Primeiro e segundo mês de internaçaoNo dia seguinte foi avaliado pelo oftalmologista, que relatou desepitelizaçao corneana bilateral e quemose, sendo prescrito epitezan quatro vezes ao dia e oclusao bilateral. No terceiro dia foi realizada broncoscopia para avaliaçao de vias aéreas. No sétimo dia de internaçao, recebeu dois concentrados de hemácias pelo critério de micro-hematócrito realizado rotineiramente no serviço. Foi traqueostomizado no décimo dia a partir da avaliaçao da cirurgia torácica. No 17º dia foi realizado desbridamento cirúrgico de áreas necróticas sem intercorrências.
Recebeu alta da UTI no 20º dia. Foi realizado enxerto em pálpebra inferior direita no 49º dia, assim como acesso venoso central em subclávia direita. No 56º dia foi solicitado parecer da psiquiatria; paciente sem sinais depressivos, foi prescrito citalopram 10 mg pela manha.
Cuidados durante a internaçaoApresentou picos febris e leucocitose com desvio à esquerda durante a internaçao. Foram feitas sucessivas culturas e antibiogramas, sendo adotada antibioticoterapia com: bactrin e polimixina B no 82º dia, linezolida, polimixina, tigeciclina e amicacina no 86º dia. Vancomicina para antibioticoprofilaxia iniciada no 93º dia. Todos os curativos diários foram feitos com sulfadiazina de prata e óleo de girassol. Recebeu alta em 25 de marco de 2016, após 3 meses e 7 dias de internaçao.
SeguimentoApós alta, foram prescritos dipirona, polaramine, bromoprida, epitezan pomada e cefalexina 500 mg por 7 dias. Seguiuse o acompanhamento com a cirurgia plástica, para correçao estética e de contraturas residuais (nova cirurgia marcada para julho de 2016). Foi encaminhado para fisioterapia em maio de 2016, devido à perda da mobilidade causada pelas contraturas (Figuras 1 a 3).
Figuras 1 a 3 - Fotos feitas no dia 5 de junho de 2016, mostrando o aspecto das lesoes em diversas regioes do corpo
Encaminhou-se ao oftalmologista, devido ao acometimento visual causado pela queimadura e ressecamento gerado pelo espessamento da pele infraorbital, que limita o fechamento dos olhos, principalmente o direito. A psicóloga também foi solicitada em maio de 2016, para o devido tratamento psicológico que deve ser fornecido ao grande queimado, principalmente na questao da aceitaçao e colaboraçao com o tratamento. O paciente era adolescente e sofreu grande transformaçao estética, nao estava frequentando a escola desde o acidente, além de nao colaborar com o uso de protetor solar diário. O tempo de tratamento foi determinado pelo profissional de psicologia que o acompanha.
Fez uso de dexclorfeniramina (7 ml de 8/8 horas), e prometazina 25 mg (dois comprimidos à noite) para alívio de prurido generalizado, principalmente nas regioes cutâneas mais afetadas. Além do uso, seis vezes ao dia, de colírio Lacrima Plus (dextrana 70 1 mg/ml e hipromelose 3 mg/ml), pomada oftalmológica epitezan (seis vezes ao dia) e óleo de girassol em todo o corpo.
DISCUSSAOEm relaçao à localizaçao das queimaduras, em razao dos riscos estéticos e funcionais, sao desfavoráveis as queimaduras que comprometem face, pescoço e maos. Além disso, aquelas localizadas em face e pescoço costumam estar mais frequentemente associadas à inalaçao de fumaça, assim como podem causar edema considerável, prejudicando a permeabilidade das vias respiratórias e levando à insuficiência respiratória. Por outro lado, as queimaduras próximas a orifícios naturais apresentam maior risco de contaminaçao séptica
7.
A idade do paciente queimado deve ser considerada na avaliaçao da gravidade das queimaduras. Idosos e crianças costumam ter repercussao sistêmica mais crítica, os primeiros pela maior dificuldade de adaptaçao do organismo, e os últimos pela desproporçao da superfície corporal em relaçao ao peso. Nessas faixas etárias as complicaçoes sao, portanto, mais comuns e mais graves
7.
Queimadura grave (como aqui relatado) ocorre quando houver insuficiência respiratória instalada ou potencial (face e pescoço) e queimaduras de segundo ou terceiro grau superiores a 10% da superfície corpórea (SC) em crianças e 15% da SC em adultos. Nesses casos graves, toda e qualquer medicaçao deverá ser administrada exclusivamente por via endovenosa, exceto o reforço de toxoide tetânico, se necessário, que será intramuscular. Deve-se, portanto, providenciar imediatamente um acesso venoso superficial com cateter de polietileno agulhado
7.
O atendimento à vítima de queimadura grave obrigatoriamente deve ser prestado em ambiente hospitalar e compreende quatro estádios em ordem cronológica: 1. Controle da funçao respiratória (permeabilidade das vias aéreas); 2. Reidrataçao parenteral e vigilância do estado hemodinâmico; 3. Tratamento analgésico; 4. Acondicionamento do queimado para o transporte à Unidade de Queimados
7.
As complicaçoes nao infecciosas mais comuns sao cardiovasculares (choque cardiogênico, falência cardíaca, arritmia com necessidade de tratamento farmacológico), pulmonares (embolia pulmonar, síndrome do estresse respiratório aguda, doença pulmonar obstrutiva crônica, pneumotórax), neurológicas (injúria cerebral, anoxia, convulsao), hematológicas (trombose venosa profunda, trombocitopenia induzida por heparina, sangramento gastrointestinal), e renais (insuficiência renal aguda necessitando de hemodiálise). Complicaçoes infecciosas incluem sepse, choque séptico, infecçao por cateter, infecçao urinária e pneumonia
6.
Sendo assim, os estudos sugerem que o cuidado intensivo tem por objetivo primordial limitar a progressao da repercussao sistêmica das queimaduras graves, prevenindo o desenvolvimento de falência orgânica, sobretudo respiratória, cardíaca, renal e cerebral. Além disso, devem ser mantidos o suporte nutricional e o controle de infecçao, principal causa de mortalidade, uma vez ultrapassado o período de ressuscitaçao
7. Portanto, o caso relatado cumpriu com a recomendaçao da literatura, sobre os cuidados na unidade de queimados.
A abordagem do caso a longo prazo, com encaminhamentos para psicólogos, fisioterapeutas e cirurgia plástica, também sao condutas sugeridas na literatura, visto que houve uma melhora nos índices de sobrevida dos grandes queimados, e crescentes progressos vêm sendo alcançados no campo da reconstruçao das áreas destruídas, da reabilitaçao funcional e psicológica, e da reintegraçao social das vítimas de queimaduras
7.
Principalmente, no caso de adolescentes, que sofreram grande transformaçao física, funcional e mental, o acompanhamento psicológico se faz necessário para que voltem a frequentar a escola e saibam a importância de seguir as recomendaçoes dos profissionais de saúde envolvidos no tratamento.
CONCLUSAOO bom resultado obtido com o tratamento deve-se ao aporte clínico, cirúrgico e a intervençao tempestiva, sendo que os primeiros cuidados, após o atendimento de emergência, ocorreram no hospital que oferece os serviços de referências para queimados em Mato Grosso do Sul. Os fatores que provavelmente influenciaram a sobrevida foram a combinaçao da imediata da reposiçao volêmica com a agressividade cirúrgica nos curativos diários, sob analgesia eficaz, somadas ao suporte nutricional com altas taxas calóricas e proteicas, além do agressivo tratamento da sepse.
O paciente recebeu alta hospitalar em 25 de março de 2016, após 3 meses e 7 dias de internaçao, deambulando, com funçao renal preservada, sem área queimada exposta e com sequela funcional motora a ser corrigida em cirurgia agendada para o mês de julho de 2016.
Portanto, o sucesso do tratamento de pacientes com maciço trauma térmico depende, acima de tudo, do esforço de toda uma equipe multidisciplinar bem coordenada e especializada, treinada e vigilante 24 horas por dia.
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7. Vale ECS. Primeiro atendimento em queimaduras: a abordagem do dermatologista. An Bras Dermatol. 2005;80(1):9-19.
Recebido em
6 de Junho de 2016.
Aceito em
2 de Agosto de 2016.
Local de realização do trabalho: Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) – Associação Beneficente de Campo Grande Santa Casa (ABCG), Campo Grande, MS, Brasil.