RESUMO
Sabemos que o Atendimento Pré-Hospitalar (APH) à vítima queimada ainda é uma área bastante carente de informaçoes precisas no Brasil. Os socorristas, muitas vezes, têm pouco conhecimento para fazer um atendimento rápido, eficiente e eficaz ou possuem material escasso - e às vezes inexistentes - em suas viaturas ou bases de atendimento. Além disso, o estresse que este tipo de evento causa faz com que as equipes de socorro nem sempre se sintam confortáveis e seguras em assumir um evento tao devastador, principalmente se os envolvidos forem crianças, idosos ou múltiplas vítimas.
A publicaçao de Patrick Bourke, na revista Ambulance UK (Reino Unido), aponta a importância do resfriamento correto da queimadura no cenário préhospitalar, mostrando a história desta prática, o motivo e o modo correto de como este procedimento tao simples e importante pode ser realizado. O correto resfriamento da lesao, a proteçao de infecçoes secundárias, a prevençao da hipotermia clínica e o alívio da dor ainda no APH irao influenciar diretamente na evoluçao destes pacientes, reduzindo custos com medicaçao, tempo de internaçao e prognóstico desta vítima.
ABSTRACT
It is known that Prehospital Emergency Care (PHEC) to burned victims is an area needing accurate information in Brazil. Quite often, PHEC responders have little knowledge to provide fast, efficient and effective care or count on little - sometimes, inexistent - material in their ambulances or care units. Besides, the stress caused by this kind of event makes rescue teams not always comfortable and confident to respond to a such devastating event, especially when children, elderly or multiple victims are involved.
Patrick Bourke's article published in Ambulance UK (United Kingdom) points out the importance of burn fast cooling in prehospital care, showing the history of this practice, the reason for performing it and the correct way this simple and important procedure can be carried out. The injury correct cooling, protection against secondary infections, clinical and pain relief during PHEC will directly influence the patient's outcome, reducing medication costs and hospital stay and improving victim's prognosis.
Cláudio Galeno, 129 a 200 d.C., foi um proeminente médico cirurgiao dos imperadores romanos de sua época. Durante sua vida, Galeno influenciou o desenvolvimento de numerosos estudos científicos abrangendo anatomia, fisiologia, patologia, neurologia e farmacologia, sendo considerado por muitos como um dos fundadores dessas disciplinas.
Curiosamente, uma das referências mais antigas ao uso de água fria para aliviar a dor das queimaduras é creditada a Cláudio Galeno, que a utilizou como método para aliviar a dor e interromper a progressao da lesao.
Abu Bekr Mohammad (Rhazes), 852 a 923 d.C., considerado o Galeno de sua época, foi um médico muito importante na Arábia que conquistou o posto de chefe dos residentes de medicina do renomado Hospital de Bagdá. Ele defendia os benefícios do resfriamento com uso de água para aliviar a dor e interromper o processo das queimaduras.
O QUE MUDOU DESDE ENTAO? NAO MUITO, EXCETO.As queimaduras graves ainda sao ocorrências devastadoras, que deixam pacientes com sequelas físicas e psicológicas por muito tempo. Sao mundialmente consideradas por paramédicos um dos ferimentos mais dolorosos e desafiadores presentes nos atendimentos de resgate e emergência médica
1.
De acordo com Singer et al., um dos primeiros e mais utilizados tratamentos de queimaduras é o resfriamento da superfície atingida. O resfriamento tem potenciais benéficos, tais como proporcionar alívio da dor, menor formaçao de edemas, reduçao da taxa de infecçao, assim como do aprofundamento da lesao, cicatrizaçao mais rápida, menor necessidade de enxertia, diminuiçao das cicatrizes e da mortalidade. Embora o resfriamento deva ter início o mais rapidamente possível, sua realizaçao mesmo que tardia pode ser benéfica
2.
Atualmente, inúmeros trabalhos clínicos escritos por profissionais respeitados em emergência com queimaduras em todo o mundo defendem e discutem a correta utilizaçao de água fria corrente como primeira resposta para resfriamento do ferimento
3-13. A profundidade da análise dos diferentes autores é exaustiva em suas tentativas de apresentar a circunstância perfeita para o uso de água fria corrente no primeiro atendimento da queimadura levando em consideraçao a temperatura ideal, quantidade, origem, tempo de aplicaçao, tempo de utilizaçao ideal, hipotermia, infecçao, resfriamento evaporativo ou convectivo, etc., todos buscando incessantemente a melhor reepitelizaçao
14. A lista é interminável, pois cada um quer apresentar suas consideraçoes a respeito de uma soluçao simples e internacionalmente reconhecida para uma lesao potencialmente devastadora.
Se disponível imediatamente e em quantidade suficiente, a água corrente fria e limpa deve ser utilizada sobre a queimadura o mais rápido possível e por 20 minutos durante os primeiros socorros a queimaduras, conforme recomendado por muitas das principais organizaçoes mundiais de profissionais envolvidos no atendimento de emergências de queimaduras
6. Infelizmente, este período de 20 minutos é raramente atingido
15, considerando o desejo do paciente/socorrista por maior intervençao clínica associado à preocupaçao com infecçao e hipotermia. Curiosamente, em seus artigos Singer et al. e Lönnecker et al.
2,16 relatam que o resfriamento pré-hospitalar nao parece contribuir para hipotermia em atendimento pré-hospitalar.
Como afirmam DeBoer & O'Connor
17, a dor causada por queimaduras é diferente de todas e pode exigir analgesia considerável. O principal desejo de vítimas de queimaduras é aliviar a dor (queimaduras superficiais, de primeiro e segundo graus) e impedir o aumento da lesao na pele. A reaçao natural de qualquer ser humano é buscar imediatamente algo que resfrie o local para aliviar assim a dor e reduzir a gravidade da queimadura. É importante lembrar sempre que a estrutura da pele de crianças e idosos é muito mais fina, portanto, estao potencialmente mais expostos a ferimentos mais sérios. Já foi demostrado que a temperatura limiar da sensaçao de dor cutânea em adultos é bem baixa, cerca de 43ºC (109,4ºF)
5 e queimaduras de primeiro e segundo graus ocorrem apenas a 60ºC (140ºF)
1,17.
Se a lesao provocada pela queimadura exigir atendimento de emergência hospitalar (PS) ou de unidade de queimadura para avaliaçao complementar e tratamento, entao a resposta inicial (histórico de pré-resfriamento) é muito relevante para a recuperaçao do paciente. Como demonstraram Cuttle et al.
18, muitas pessoas apenas aplicam primeiros socorros contando com seu efeito analgésico (o que deve ser considerado na determinaçao da duraçao do tratamento ministrado). Porém, os primeiros socorros seguramente também beneficiam a cicatrizaçao da queimadura, razao pela qual devem ser amplamente divulgados.
Desconhecida pelos pacientes, a intervençao deles ou dos profissionais no atendimento médico de emergência pode influenciar significativamente a recuperaçao da queimadura e auxiliar na reduçao de morbidade e custos de saúde, já que diminui o grau de dano no tecido e, consequentemente, a necessidade de cirurgia e reconstruçao posterior
3, sem contar reduçao de hipotermia pós-queimadura, alteraçoes inflamatórias e microvasculares e necrose de tecidos e fibrose. Há também menor liberaçao de histamina, prostaglandinas e tromboxano, bem como menor metabolismo aeróbico e menor produçao de lactato e acidose metabólica
5,7,19. O resfriamento também pode promover funçao de catecolaminas e da homeostase cardiovascular
20.
Todos os benefícios mencionados acima contribuem para a reduçao do número de dias que pacientes passam no hospital.
Segundo Baldwin et al.
10, o atraso do resfriamento após a ocorrência da queimadura pode ser comprometedor, pois grande parte da lesao ocorre ou durante o processo de queimadura ou dentro dos primeiros segundos após a sua ocorrência.
Por outro lado, Venter et al.
21 mostram que o resfriamento precoce das queimaduras é benéfico para alívio da dor e demonstram clínica e histologicamente que há reduçao da lesao tissular e cicatrizaçao mais rápida em queimaduras dérmicas profundas. O resfriamento tardio de até 30 minutos é eficaz na limitaçao de danos ao tecido das queimaduras. Os ferimentos que foram resfriados com água da torneira por três horas apresentaram os menores danos ao tecido. A temperatura da água usada no resfriamento dos ferimentos por queimadura também é importante.
No atendimento pré-hospitalar, o veículo ideal para a resposta de resfriamento em emergências de queimaduras precisa ser de fácil uso, nao evaporativo, prontamente disponível, eficiente e eficaz, apropriado para adultos e crianças, aceitável em todos os meios de transporte de emergência, de fácil aplicaçao, à base e solúvel em água, nao aderente, estéril, fácil de transportar, bem como manter o local da queimadura limpo, ter capacidade de absorver altas temperaturas sem induzir à hipotermia, adaptar-se a todas as áreas do corpo e tecidos queimados, nao necessitar de aplicaçao suplementar de água e, finalmente, proporcionar extenso período de uso sem secar totalmente
22-24 .
CONCLUSAOApesar de todas as evidências clínicas disponíveis mundialmente que defendem e apoiam os benefícios do resfriamento imediato das queimaduras
25, certos protocolos ainda estabelecem como conduta "nao resfriar e aplicar curativo seco" ou que a área a ser resfriada nao deve ser inferior a <10% ou superior a <50% da Superfície Corporal Queimada (SCQ), sem nem mesmo apresentar embasamento clínico para escolha destas porcentagens. O raciocínio apresentado é o da preocupaçao com o risco de hipotermia que comprovadamente nao existe, de acordo com estudos já realizados
2,8,16. No entanto, essas mesmas recomendaçoes nao levam em conta a preocupaçao com a aderência do curativo seco ao tecido queimado e o fato que nao deve ser enfaixado ou envolto com o uso de esparadrapo, já que isso pode reter o edema que ocorre no local. Artigos clínicos com evidências corroborativas para o protocolo de curativo seco sao, no mínimo, raros, considerando o peso das evidências internacionais atuais que fundamentam o protocolo do resfriamento controlado.
É interessante notar que, em todos os estudos já realizados que defendem os benefícios do resfriamento com água corrente fria, nao é discutida em detalhes a possibilidade de infecçao trazida pela água de origem desconhecida. Alguns artigos clínicos recentes escritos por autores respeitáveis abordam essa preocupaçao em atendimentos pré-hospitalar e hospitalar
26-29.
Obs.: Como este artigo diz respeito apenas à necessidade de resfriamento pré-hospitalar eficiente e eficaz da queimadura, é importante mencionar que o tratamento completo do paciente com queimadura pode envolver muito mais do que o que abrange este artigo.
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1. Diretor da Severe Burns Life Support Foundation (SBLS); Membro da British Burn Association (BBA); Membro da American Burn Association (ABA); Membro da International Society for Burn Injuries (ISBI); Membro do Euro-Mediterranian Council for Burns and Fire Disasters (MBC); Membro da National Association of Emergency Medical Technicians (NAEMT USA); Membro da National Association of EMS Educators (NAEMSE USA); Membro da International Association of EMS Chiefs (IAEMSC USA)
2. Bombeiro Profissional Civil; Socorrista voluntário; Estudante de enfermagem; Filiado à Sociedade Brasileira de Queimaduras (SBQ)
*Traduzido e adaptado para o português e publicado na Revista Brasileira de Queimaduras com autorizaçao do autor e da "Ambulance UK".
**Original publicado na Revista Ambulance UK. 2014;29(4):184-5.
***Traduzido e adaptado por Adriano von Faber Bison