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Relato de Caso

Úlcera de estresse no paciente queimado Stress ulcer in burned patients

Stress ulcer in burned patients

Ricardo Araújo de Oliveira1; Marcela Leonardo Barros2

RESUMO

A úlcera de estresse pode ocorrer, dentre outras situaçoes, nas queimaduras graves (de Curling), em que a mortalidade é bastante elevada. Contribuem para a formaçao dessa úlcera a isquemia de mucosa, a presença do ácido e a difusao de ureia no estômago, bem como a acidose grave e a deficiência de energia diferencial na célula mucosa. Este é um relato de caso de um paciente queimado grave, etilista crônico, sem comorbidades, que desenvolveu uma úlcera duodenal perfurada no terceiro dia de internaçao hospitalar. Pacientes queimados apresentam reduçao da perfusao esplâncnica, que torna a mucosa intestinal isquêmica, seguido de lesao e hemorragia. Tal cadeia de eventos normalmente ocorre em 72 horas. Alguns estudos demonstraram que o uso profilático de bloqueadores H2 reduziu a incidência da referida úlcera para 0,9%. Outros evidenciam que os inibidores de bomba de prótons sao ainda mais eficazes em aumentar e manter o pH. Preconiza-se que esses doentes devem receber 40 mg de omeprazol intervaladas de 6 horas no primeiro dia, seguidas de 20 mg por dia nos dias seguintes. Novos métodos de profilaxia contra a úlcera de Curling devem ser estudados a fim de reduzir a morbimortalidade desta doença.

Palavras-chave: úlcera de Curling. úlcera Péptica Perfurada. Queimaduras.

ABSTRACT

Besides other medical situations, stress ulcer may occur in patients with severe burns (Curling's ulcer) whose mortality rate is expressively high. Factors such as mucosal ischemia, the presence of acid and urea diffusion in the stomach contribute to ulceration, as well as severe acidosis and differential energy deficiency in mucosal cell. This is a case report of a severe burned patient with chronic alcoholism and no comorbidities who developed a perforated duodenal ulcer on the third day of hospitalization. Splanchnic hypoperfusion presented by burned patients leads to ischemia of the bowel mucosa resulting in injury and hemorrhage. Such chain of events usually develops in 72 hours. In some studies, the prophylactic use of H2 blockers was able to reduce the incidence of that ulcer to around 0.9%. In others, the proton-pump inhibitors are more effective in increasing and maintaining the pH level. It's recommended that these patients should receive 40 mg of omeprazole every 6 hours during the first day and 20 mg per day from the second day on. New prophylactic methods against the Curling ulcer should be studied in order to decrease morbidity and mortality rates of this disease.

Keywords: Curling's Ulcer. Peptic Ulcer Perforation. Burns.

INTRODUÇAO

Curling descreveu a primeira úlcera de estresse em 18421. Tratavam-se de úlceras duodenais associadas a queimaduras como uma entidade clínica à parte do espectro clássico da doença péptica. Dupuytren, dez anos antes, havia relatado sobre ulceraçoes intestinais em pacientes que sobreviviam de lesoes produzidas por queimaduras2.

A úlcera de estresse se desenvolve em minutos ou horas. Atinge a submucosa, na qual nao há a fibrose típica da úlcera cloridropéptica. Pode-se desenvolver em quatro eventualidades: vítima de trauma grave ou operaçao; após queimaduras graves (de Curling); após trauma, doença ou operaçao intracraniana (de Cushing); após uso oral de drogas3.

Sao fatores que colaboram para a formaçao da úlcera3 a isquemia de mucosa, a presença do ácido, mesmo sem aumento expressivo, a retrodifusao de ácido exacerbado pelo refluxo duodenal ou difusao de ureia no estômago. Outros fatores sao a acidose grave, a depressao de secreçao ácida e consequente queda do fluxo alcalino e a deficiência de energia diferencial na célula mucosa, que resulta da isquemia e interfere com a mudança de HCO3 - por Cl-.

A hemorragia digestiva ocorre em 64% das úlceras, com predomínio de hematêmese, e em 43% dos pacientes ela é maciça. Já a perfuraçao ocorre em 12% os casos. As crianças sao igualmente acometidas e é mais comum no sexo masculino. Nos grandes queimados, a incidência é ainda maior4,5. Apesar de ser cada vez menos verificada nas unidades de tratamento de queimados, a úlcera de Curling ainda é uma complicaçao que traz uma mortalidade muito alta a esses pacientes.

O objetivo desse estudo é relatar o caso de um paciente queimado que desenvolveu uma úlcera perfurada, atendido pelo Serviço de Cirurgia Plástica do Hospital de Urgências de Sergipe (HUSE) e ressaltar os principais aspectos dessa doença.


RELATO DE CASO

Paciente E.A.C., sexo masculino, 41 anos, etilista crônico, sem outras comorbidades, foi admitido no Hospital de Urgências, em Aracaju, SE, como vítima de queimadura por fogo.

Ao exame físico, o paciente apresentava queimadura de cerca de 15% de superfície corporal abrangendo áreas de 2ºe 3º graus, que envolviam o tronco anterior, membros superiores, pescoço e face. Foi prontamente encaminhado ao centro cirúrgico, onde foi submetido a desbridamento e curativo com sulfadiazina de prata a 1% nas áreas queimadas. Em seguida, foi transferido para a Unidade de Tratamento de Queimados, onde foi medicado com analgésicos (conforme protocolo do hospital), hidrataçao e inibidor de bomba de próton intravenoso (omeprazol 40 mg por dia).

No terceiro dia de internaçao, evoluiu com distensao e dor abdominal, bem como piora do estado geral. Na ultrassonografia de abdome realizada, evidenciou-se grande quantidade de líquido livre na cavidade. O paciente entao foi submetido a uma laparotomia exploradora, com achado de perfuraçao de úlcera na primeira porçao duodenal. O tratamento foi a rafia da lesao duodenal (Figura 1). O paciente manteve-se grave e apresentou quadro de insuficiência renal. Na segunda semana de internaçao, foi a óbito.


Figura 1 - Paciente queimado após laparotomia.



DISCUSSAO

Pacientes queimados vivenciam uma quebra de homeostase importante, com vasodilataçao, aumento de permeabilidade capilar e, por conseguinte, instabilidade hemodinâmica grave. A reduçao da perfusao esplâncnica torna a mucosa intestinal isquêmica e, como via final desta cadeia de eventos, ocorre lesao da mucosa intestinal e hemorragia. Em 1852, Curling relatou a primeira série de casos com sangramento digestivo, sendo 10 pacientes com úlcera duodenal. Este tipo de úlcera de estresse em queimados recebeu, entao, seu nome. Nesta época, essa úlcera era causa frequente de óbito nesses pacientes e, desde os primeiros estudos, já era considerada uma complicaçao precoce. A maioria dos casos se desenvolvia nas primeiras 72 horas6,7.

Antes do advento dos bloqueadores H2 e da disponibilidade da endoscopia digestiva, a incidência de úlcera de Curling era descrita em aproximadamente 12% dos pacientes queimados e sua mortalidade chegava até 77% dos que desenvolviam tal complicaçao, como descrito por Pruit em 19708.

Em 1974, Czar9 descreveu uma série de casos de 32 pacientes queimados submetidos à endoscopia digestiva alta. Destes, 86% apresentaram erosoes gástricas e 28% apresentavam úlceras duodenais. Ademais, houve hemorragia digestiva grave ou perfuraçao em 25% daqueles pacientes.

Com o surgimento dos bloqueadores H2 e, posteriormente, dos inibidores da bomba de prótons (IBP), houve uma mudança nesse cenário. Em estudos com pacientes usando bloqueadores H2 de rotina, a incidência de úlcera de Curling reduziu para 0,9 a 0,6%10,11. Os inibidores de bomba de prótons (IBP) inibem a secreçao ácida por meio da inativaçao irreversível da H+k+ATPase na superfície secretora da célula parietal. Como atuam no passo final da secreçao ácida, resultam em inibiçao ácida, independentemente da estimulaçao pela gastrina, acetilcolina ou histamina11. Existem menos dados sobre a eficácia dos IBP na profilaxia de úlceras de estresse do que sobre outros fármacos. Contudo, a maior capacidade dos IBP em aumentar e manter elevado o pH, em comparaçao aos bloqueadores H2, sugere que aqueles sejam mais eficazes do que esses12.

A utilizaçao de omeprazol sob a forma oral foi avaliada em dois estudos. Um deles envolveu 75 doentes admitidos numa unidade de queimados necessitando de ventilaçao mecânica. Tais doentes receberam 40 mg de omeprazol oral através de SNG seguida da mesma dose, após 6-8 horas, e, nos dias seguintes, foram administrados 20 mg por dia2. O outro13 envolveu 60 politraumatizados submetidos à ventilaçao mecânica. Os doentes receberam igualmente duas administraçoes de 40 mg de omeprazol oral intervaladas de 6 horas no primeiro dia, seguidas de 20 mg por dia nos dias seguintes. Nao se verificaram quaisquer episódios de hemorragia em qualquer desses estudos. No entanto, o pequeno número de doentes incluídos impediu a formulaçao de conclusoes. Existem evidências mais recentes de que o uso de nutriçao enteral precoce em posiçao gástrica é capaz de reduzir a incidência desta complicaçao e até mesmo substituir o uso de antiácidos14.


CONCLUSAO

Após exposiçao e discussao do caso abordado neste relato, fica evidente a importância da profilaxia da úlcera de Curling. Apesar dos grandes avanços medicamentosos, a doença ainda proporciona grande morbidade e mortalidade aos pacientes queimados. Assim, novos estudos sao imprescindíveis a fim de se estabelecer os medicamentos e a respectiva dose ideal para a profilaxia adequada desses pacientes.


REFERENCIAS

1. Curling TB. On acute ulceration of the duodenum in cases of burn. Med Chir Trans London. 1852;25:260-81.

2. Pompilio CE, Cecconello I. Profilaxia das úlceras associadas ao estresse. Arq Bras Cir Dig. 2010;23(2):114-7.

3. Silen W, Merhav A, Simson JN. The pathophysiology of stress ulcer disease. World J Surg. 1981;5(2):165-74.

4. Priebe HJ, Skillman JJ. Methods of prophylaxis in stress ulcer disease. World J Surg. 1981;5(2):223-33.

5. Pruitt BA Jr, Goodwin CW Jr. Stress ulcer disease in the burned patient. World J Surg. 1981;5(2):209-22.

6. Swan J. Cases of severe burn. Edinburgh Med J. 1823;19:344.

7. Tokyay R, Zeigler ST, Traber DL, Stothert JC Jr, Loick HM, Heggers JP, et al. Postburn gastrointestinal vasoconstriction increases bacterial and endotoxin translocation. J Appl-Physiol (1985). 1993;74(4):1521-7.

8. Pruitt BA Jr, Foley FD, Moncrief JA. Curling's ulcer: a clinical-pathology study of 323 cases. Ann Surg. 1970;172(4):523-39.

9. Czaja AJ, McAlhany JC, Pruitt BA Jr. Acute gastroduodenal disease after thermal injury. An endoscopic evaluation of incidence and natural history. N Engl J Med. 1974;291(18):925-9.

10. Chernov VN, Miziev IA. Acute gastric and duodenal ulcers in burns. Klin Med (Mosk).1998;76(12):42-4.

11. Fadaak HA. Gastrointestinal haemorrhage in burn patients the experience of a burns unit in Saudi Arabia. Ann Burns Fire Disasters. 2000;13(2):81-3.

12. Netzer P, Gaia C, Sandoz M, Huluk T, Gut A, Halter F, et al. Effect of repeated injection and continuous infusion of omeprazole and ranitidine on intragastric pH over 72 hours. Am J Gastroenterol. 1999;94(2):351-7.

13. Phillips JO, Metzler MH, Palmieri MT, Huckfeldt RE, Dahl NG. A prospective study of simplified omeprazole suspension for the prophylaxis of stress-related mucosal damage. Crit Care Med. 1996;24(11):1793-800.

14. Lasky MR, Metzler MH, Phillips JO. A prospective study of omeprazole suspension to prevent clinically significant gastrointestinal bleeding from stress ulcers in mechanically ventilated trauma patients. J Trauma.










1. Cirurgiao plástico, membro associado da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, Aracaju, SE, Brasil
2. Residente de cirurgia geral do Hospital de Urgências de Sergipe, Aracaju, SE, Brasil

Correspondência:
Ricardo Araújo de Oliveira
Av. Gonçalo Prado Rollemberg, 211, sala 608 - Centro de Saúde José Augusto Barreto
Aracaju, SE, Brasil - CEP49010-410
E-mail: ricardo0707@hotmail.com

Artigo recebido: 25/9/2014
Artigo aceito: 6/11/2014

Trabalho realizado no Hospital de Urgências de Sergipe (HUSE), Aracaju, SE, Brasil.

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