RESUMO
INTRODUÇAO: A queimadura representa um importante fator traumático em idosos que, somado às condiçoes estruturais e funcionais associadas a patologias crônicas, leva esse grupo de indivíduos a terem maior morbimortalidade decorrente desse agravo.
MÉTODOS: O presente estudo avalia os dados epidemiológicos envolvidos no trauma por queimadura na populaçao de idosos internados no Centro de Tratamento de Queimados Dr. Oscar Plaisant do Hospital Federal do Andaraí, Rio de Janeiro-RJ, entre 2009 e o primeiro semestre de 2014.
RESULTADOS: Dos 57 idosos internados, 29 eram homens, 61,7 anos, com trauma em forma de acidente decorrente de chama, dentro do domicílio, tendo taxa de óbito de 32%.
CONCLUSAO: Queimaduras em idosos necessitam de atençao especial devido às condiçoes diferenciadas desses pacientes, expondo-os ao maior risco, bem como maior índice de complicaçoes e óbito.
Palavras-chave:
Perfil Epidemiológico. Queimaduras. Unidades de Queimados. Idoso.
ABSTRACT
INTRODUCTION: Burns represent a major trauma factor in elderly patients that, added to physiological changes and chronic pathologies, lead this group to a highermorbidity and mortality.
METHODS: This study evaluate epidemiologic data in old patients burned and hospitalized in Burn Treatment Unit Dr. Oscar Plaisant from Andaraí Federal Hospital, Rio de Janeiro-RJ, between 2009 and first half of 2014.
RESULTS: From 57 elderly patients hospitalized, 29 were men, 61.7 years, with trauma from accidents by flame, inside home, with 32% death rate.
CONCLUSION: Burns in the elderly require special attention due to unique conditions of these patients, exposing them to higher risk as well as higher rates of complications and death.
Keywords:
Epidemiological Profile. Burns. Burns Units. Aged.
INTRODUÇAOA Organizaçao Mundial de Saúde (OMS) define genericamente como idoso aquele indivíduo com 60 anos ou mais
1. A atençao à populaçao idosa tem crescido nos últimos anos, a ponto de se tornar prioridade nos programas de saúde pública em todo o mundo. Em escala global, esse grupo compreende cerca de 11% da populaçao geral, com expectativa de aumento nas próximas décadas. No Brasil, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, a populaçao de idosos passou de 9,1% em 1999 para 11,3% em 2009
1-3.
Tal crescimento, associado a uma forma de vida mais saudável e mais ativa, deixa este grupo de pessoas mais exposto ao risco de acidentes
2. Além disso, modificaçoes sociais e da estrutura familiar fazem com que grande parte dessa faixa etária nao conte com o auxílio de pessoas mais jovens e, portanto, tenha que se expor a riscos de acidentes ao desempenhar tarefas domésticas. Esses pacientes representam um desafio para os que tratam das queimaduras
4. Esse tipo de trauma representa importante causa de morte entre os idosos vítimas de acidente. A idade avançada diminui significativamente a taxa de sobrevida decorrente desse agravo. Entretanto, a percentagem da área corporal comprometida ainda é o principal fator prognóstico nesse tipo de acidente nos idosos. Queimaduras que comprometam mais de 10% da superfície corporal no idoso sao consideradas graves; quando a área comprometida envolve 40%-50%, o acidente tem quase sempre evoluçao fatal
5-7.
As alteraçoes estruturais e funcionais, assim como a coexistência de doenças sistêmicas, predispoem os idosos a diversos acidentes, principalmente quando comparadas àquelas pessoas com grande reserva fisiológica. Apesar dos idosos sofrerem as mesmas lesoes dos indivíduos mais jovens, apresentam diferenças no que diz respeito ao espectro das lesoes, à dominância sexual, à duraçao e ao resultado da evoluçao
2,8,9.
O presente estudo tem como objetivo analisar o perfil epidemiológico dos pacientes idosos internados no Centro de Tratamento de Queimados (CTQ) Dr. Oscar Plaisant do Hospital Federal do Andaraí, Rio de Janeiro-RJ, no período de 2009 ao primeiro semestre de 2014.
MÉTODOEstudo retrospectivo realizado no período entre janeiro de 2009 a julho de 2014. Os dados foram coletados do banco de dados do CTQ e transportados para a planilha do Microsoft Excel. As variáveis analisadas foram gênero, idade, agente causal, local e qualificaçao do trauma, superfície corpórea queimada (SCQ%), tempo de internaçao e óbito.
RESULTADOSForam internados 57 pacientes, sendo 51,9% do gênero masculino e a mediana da idade 61,7 anos. O agente causal mais frequente foi a chama (42%), seguido do líquido (19%), gás (18%), álcool (14%), elétrica (5%) e combustível (2%) (Tabela 1 e Figura 1).
Figura 1 - Agentes causais.
Quanto à localizaçao, 51 queimaram-se dentro do domicílio, três em acidentes de trabalho, dois em via pública e um fora do domicílio. (Tabela 2, Figura 2). Do total, 55 foram acidentes e houve duas tentativas de suicídio (Figura 3). A maioria teve como tempo de internaçao de duas a cinco semanas, sendo 17 com duas a três e 15 com quatro a cinco semanas. O número de internaçoes foi de 11 pacientes em 2009, nove em 2010, 2011 e 2012, 15 em 2013 e quatro no primeiro semestre de 2014 (Tabela 3 e Figura 4).
A superfície corporal queimada em porcentagem (SCQ%) predominante foi de 10% a 19% em 23 pacientes, 20% a 29% em 12, 0% a 9% em 10, 30-39% em quatro, 40% a 49% em cinco e 50 a 59% em três (Tabela 4 e Figura 5).
Figura 5 - Porcentagem da superfície corporal queimada.
A taxa de óbito foi de 32%, tendo sido nove homens e nove mulheres (Figura 6). Os agentes causais mais frequentes dentre os óbitos foram chama, gás e álcool, com localizaçao dentro do domicílio, decorrentes de acidentes e tempo de internaçao de duas a três semanas. A superfície corpórea queimada foi de 10%-19% em seis pacientes, 40%-49% em cinco, 30%-39% em três, 20%-29% em dois e 50%-59% em dois (Figura 7).
Figura 6 - Gráfico mostrando taxa de óbito de 32%, 9 homens e 9 mulheres.
Figura 7 - Número de óbitos de acordo com a porcentagem da superfície corporal queimada %.
DISCUSSAOCom o progressivo envelhecimento populacional, as questoes referentes à prevençao de acidentes, das lesoes traumáticas graves e das queimaduras em indivíduos idosos vêm ganhando importância. A idade avançada tem sido apontada como um importante fator de risco para a ocorrência de queimaduras, além de contribuir para uma evoluçao clínica desfavorável e incrementar as suas complicaçoes
10-14.
Existe uma miríade de fatores que aumentam a susceptibilidade do idoso aos traumas e queimaduras, dentre os quais podemos destacar as alteraçoes fisiológicas do envelhecimento, a presença de multimorbidade, os déficits sensoriais, funcionais e cognitivos, além de fatores sociais e ambientais
12.
A superfície cutânea propicia proteçao contra micro-organismos invasores e radiaçao ultravioleta, além de evitar a perda anormal de líquido, auxiliando na termorregulaçao. O envelhecimento fisiológico resulta em alteraçoes cutâneas e imunológicas que aumentam o risco das queimaduras. Devido a sua exposiçao, a pele é o órgao do corpo humano que mais evidencia o envelhecimento do indivíduo
15.
O envelhecimento cutâneo nao ocorre de maneira homogênea entre os indivíduos, pois se deve tanto aos fatores intrínsecos, relacionados à genética e à idade, quanto aos fatores extrínsecos como a exposiçao solar e o tabagismo, por exemplo
10,15. O conjunto dessas alteraçoes que ocorrem ao longo da vida ocasiona, de maneira geral, uma reduçao na espessura da pele, diminuiçao na resposta inflamatória, lentificaçao do processo de cicatrizaçao e desregulaçao térmica, além da predisposiçao às lesoes devido à diminuiçao da sensibilidade tátil e vibratória.
Na epiderme, observa-se diminuiçao da espessura, reduçao dos melanócitos e das células de Langerhans. Na derme também se observa reduçao da espessura, além de diminuiçao dos fibroblastos, mastócitos e vasos sanguíneos. Observa-se, ainda, reduçao das fibras de colágeno, assim como sua desorganizaçao, o que contribui com a modificaçao do processo de cicatrizaçao.
Os corpúsculos de Vater-Pacini e Meissner decrescem sua densidade sobre a pele, reduzindo a sensibilidade à pressao, tátil e vibratória, além de aumentar o limiar de sensibilidade dolorosa, o que predispoe às lesoes traumáticas graves, como as queimaduras.
No idoso, observa-se um estado inflamatório crônico, devido ao aumento de citocinas, que está relacionado ao aumento da prevalência e gravidade das infecçoes, além de complicaçoes após traumas. Ressalta-se que as interleucinas associadas à imunosenescência, como a IL-1β, IL-6 e TNF-α também estao relacionadas à resposta inflamatória após as queimaduras
4. As alteraçoes imunológicas decorrentes do envelhecimento desempenham um papel significativo na complicaçao das infecçoes e aumentam a morbimortalidade dos pacientes idosos queimados.
A multimorbidade se refere à história patológica do idoso, que, geralmente, tem mais de uma doença crônica, como doenças cardiovasculares, diabetes melitus, pneumopatias, insuficiência renal crônica e doenças neurodegenerativas. Além disso, os idosos tendem a ter suas reservas fisiológicas no limite inferior, aumentando a sua vulnerabilidade aos desfechos negativos em situaçoes agudas, como nas queimaduras.
A presença de doenças crônicas associada à polifarmácia e à fragilidade geralmente resulta em limitaçoes físicas, como alteraçao de marcha e do estado de alerta, podendo culminar na dificuldade de prevenir acidentes e em uma lentificaçao da resposta ao trauma.
Quando o grau de independência nas atividades físicas está comprometido, com reduçao da mobilidade, reduz-se também a capacidade de prevenir acidentes e de fugir em caso de perigo.
A desnutriçao contribui nao só para a reduçao da mobilidade como também diminui a resposta do sistema imunológico e atrasa o processo de cicatrizaçao das feridas.
Os déficits sensoriais nao corrigidos, funcionais e cognitivos, sao de fundamental importância quando se pensa em prevençao de acidentes. Neste sentido, é fundamental uma avaliaçao global dos idosos por uma equipe preparada, assim como do domicílio, para planejar medidas que garantam um ambiente seguro, tanto para prevenir incêndios quanto para viabilizar uma rota de fuga quando necessário
11,13. Independentemente do ambiente adaptado, o idoso portador de déficit cognitivo necessita de vigilância, devido à possibilidade de colocar-se em situaçao de risco inadvertidamente.
Alguns fatores sociais e ambientais estao relacionados ao risco de trauma e sao: o idoso que vive sozinho, baixo nível econômico e baixa escolaridade. O baixo nível socioeconômico e escolar dificulta tanto o entendimento das situaçoes de risco quanto a aquisiçao de equipamentos necessários à prevençao de incêndios ou mesmo adequada manutençao do domicílio.
A resposta endócrino-metabólica ao trauma resulta em um estado de hipermetabolismo e catabolismo em qualquer indivíduo. No idoso queimado, pode culminar em perda muscular e de densidade óssea, acentuando o seu estado de fragilidade e, assim, dificultando ainda mais o processo de cicatrizaçao
10.
A lesao por queimadura é relevante, nao só pelo local afetado em si, mas também por seus efeitos sistêmicos, incluindo os causados por inalaçao. Dentre as complicaçoes sistêmicas que implicam na recuperaçao clínica, observa-se a lesao pulmonar aguda, síndrome do desconforto respiratório agudo, depressao do miocárdio e insuficiência renal
10.
O idoso queimado apresenta maior morbimortalidade, tem recuperaçao mais lenta, mais complicaçoes e, consequentemente, maior tempo de hospitalizaçao e custo tanto no cuidado agudo como na reabilitaçao
11,14.
CONCLUSAOAs queimaduras em idosos necessitam de atençao especial, devido às condiçoes diferenciadas desses pacientes, expondo-os ao maior risco desse trauma, bem como maior índice de complicaçoes e óbito. O perfil do paciente idoso internado no Centro de Tratamento de Queimados do Hospital Federal do Andaraí pode ser resumido em um indivíduo de 61,7 anos, decorrente de acidente domiciliar com queimadura por chama, apresentando superfície corpórea queimada de 10% a 19% e risco de morte de 32%.
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15. Tratado de geriatria e gerontologia. Freitas EV, Py L, Neri AL, Cançado FA XC, Gorzoni ML, Doll J. 3a ed. Rio de Janeiro: Guanabara-Koogan; 2011.
1. Médica do Centro de Tratamento de Queimados do Hospital Federal do Andaraí.Presidente da Sociedade Brasileira de Queimaduras, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
2. Médico Residente de Cirurgia Plástica do Hospital Federal do Andaraí, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
3. Médico Especializando da Global Cirurgia Plástica, Hospital Casa de Portugal, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
4. Médica Geriatra do Hospital Naval Marcílio Dias e Membro da Comissao Científica da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia seçao Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
5. Diretora da Comissao Científica da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia seçao Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
6. Chefe do Centro de Tratamento de Queimados do Hospital Federal do Andaraí, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Correspondência:
Maria Cristina do Valle Freitas Serra
Centro de Tratamento de Queimados - Hospital Federal do Andaraí
R. Leopoldo, 280 - Andaraí
Rio de Janeiro, RJ, Brasil - CEP: 20541-170
E-mail:
mcriss9@gmail.com Artigo recebido: 15/7/2014
Artigo aceito: 10/9/2014
Trabalho realizado no Hospital Federal do Andaraí, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.