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Artigo Original

Estudo epidemiológico das sequelas de queimaduras: 12 anos de experiência da Unidade de Queimaduras da Divisão de Cirurgia Plástica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP

Epidemiology study of the burns sequelae: 12 years experience of Hospital Burn Unit of the Plastic Surgery Division of Faculty of Medicine of the University of São Paulo

Marisa R. Herson1; Nuberto Teixeira Neto2; André O. Paggiaro3; Viviane F. Carvalho4; Lucas C. C. Machado5; Thiago Ueda5; Marcus C. Ferreira6

RESUMO

Objetivo: O presente estudo pretendeu analisar os aspectos epidemiológicos envolvidos nas complicaçoes tardias das queimaduras, bem como seu manejo. Método: Os autores revisaram, retrospectivamente, os prontuários dos pacientes atendidos no Serviço de Queimaduras da Divisao de Cirurgia Plástica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, interessando aqueles submetidos à intervençao cirúrgica por sequelas pós-queimadura. A análise abrangeu um período de 12 anos. Resultados: Os pacientes apresentaram um ou mais sítios anatômicos queimados exibindo sequelas com necessidade de tratamento cirúrgico. O número de cirurgias por paciente variou de 1 a 32, chegando a 10 anos fazendo uma ou mais cirurgias anualmente. Dentre as 2286 cirurgias realizadas em 977 pacientes, 60,6% dos procedimentos foram realizados em pacientes do sexo feminino. A contratura foi o diagnóstico de 52,8% dos pacientes operados, sendo os dois locais mais acometidos o pescoço (26%) e a axila (22%). Metade (50,5%) dos pacientes necessitou de duas ou mais operaçoes, sendo realizadas, em média, de 2,34 cirurgias por doente. As ressecçoes foram o segundo procedimento mais realizado, representando 584 (25,5%) procedimentos. Conclusoes: O conhecimento dos fatores epidemiológicos inerentes às sequelas de queimaduras faz-se importante para o reconhecimento do impacto das queimaduras e suas sequelas em nosso meio. Há, indubitavelmente, necessidade de atendimento multidisciplinar ao paciente queimado, desde a fase aguda até a fase tardia, incluindo o tratamento das sequelas e complicaçoes.

Palavras-chave: Queimaduras/epidemiologia. Queimaduras/cirurgia. Estatísticas de sequelas e incapacidade. Contratura/cirurgia. Estudos retrospectivos.

ABSTRACT

Objective: This study sought to analyze the epidemiological aspects involved in the late complications of the burns and their management. Methods: The authors, retrospectively, reviewed the charts of patients seen at the Burns Service of the Division of Plastic Surgery, Hospital das Clinicas, Faculdade de Medicina da USP involving those submitted to surgery for post-burn sequelae. The analysis covered a period of twelve years. Results: The patients had one or more anatomical sites burned in need of sequels featuring surgical treatment. The number of surgeries per patient ranged from 1 to 32 surgery, reaching 10 years by one or more surgeries annually. Among the 2,286 surgeries performed in 977 patients, 60.6% of procedures were performed in female patients. The contraction was the diagnosis of 52.8% of patients, and the two sites most affected neck (26%) and axilla (22%). Half (50.5%) of the patients needed two or more surgeries. The average was 2.34 surgeries per patient. The resections were performed the second procedure being more in number of 584 (25.54%) procedures. Conclusions: The knowledge of epidemiological factors related to sequelae of burns it is important to recognize the impact of burns and their sequelae in our environment, and how they occur. There is undoubtedly need for multidisciplinary care to burned patients from the acute to late stage, including treatment of complications and sequelae.

Keywords: Burns/epidemiology. Burns/surgery. Statistics on sequelae and disability. Contracture/surgery. Retrospective studies.

Queimaduras resultam em lesoes significativas com complicaçoes tanto físicas quanto psíquicas, as quais exigem tratamento global de reabilitaçao, em coordenaçao com a equipe de cuidados agudos do queimado. Este tratamento interdisciplinar de reabilitaçao está focado na prevençao em longo prazo de problemas como cicatrizes, contraturas e outros que limitam a funçao física.

Maior conhecimento sobre a fisiopatologia das queimaduras proporcionou melhor qualidade de atendimento às vítimas agudas e crônicas. Em 2007, cerca de 1000 artigos originais sobre queimaduras foram publicados em revistas científicas utilizando o idioma Inglês1, apesar dos avanços em vigência, a eficácia dos diversos tratamentos continua a ser insatisfatória2. E, embora insuficientes, há uma estimativa de que 4 bilhoes de dólares ao ano sejam gastos nos Estados Unidos com cicatrizes resultantes de queimaduras3.

O objetivo do presente estudo foi revisar a epidemiologia dos pacientes com sequelas de queimaduras, atendidos pela Unidade de Queimaduras da Divisao de Cirurgia Plástica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de Sao Paulo, no período de fevereiro de 1995 a dezembro de 2006.


MÉTODO

O estudo envolveu o período compreendido entre fevereiro de 1995 e dezembro de 2006, analisando, retrospectivamente, os prontuários dos pacientes atendidos na Unidade de Queimaduras da Divisao de Cirurgia Plástica da Faculdade de Medicina da Universidade de Sao Paulo.

Foram estudados os dados referentes a sexo, complicaçoes das queimaduras, área anatômica envolvida, tipo de sequela, número de intervençoes, distribuiçao por sexo, tratamento instituído, número de cirurgias por paciente e seguimento.


RESULTADOS

Dentre os 2286 prontuários analisados, 900 (39,4%) dos procedimentos foram realizados em pacientes do sexo masculino e 1386 (60,6%) em pacientes do sexo feminino.

O número de mulheres operadas foi de 560, representando 57,3% dos 977 pacientes no estudo, sendo o total de homens operados de 417 (46,7%). A média foi de 2,47 procedimentos por pacientes do sexo feminino e 2,16 para o sexo masculino.

A Figura 1 apresenta o número total de pacientes submetidos a procedimentos cirúrgicos, relacionando-os independentemente do gênero.


Figura 1 - Distribuiçao do número total de procedimentos por paciente.



Quatrocentos e noventa e quatro (50,5%) pacientes necessitaram de 2 ou mais cirurgias e 279 (28,5%) foram submetidos a 3 ou mais procedimentos. A média foi de 2,34 cirurgias por paciente.

O período de acompanhamento e realizaçao de procedimentos cirúrgicos variou de 1 a 10 anos, com vários pacientes sendo submetidos a uma ou mais cirurgias anuais, chegando a 7 cirurgias em 1 ano.

Na Tabela 1 observa-se o número de cirurgias realizadas no período analisado.




Em média, foram realizados 190,75 procedimentos cirúrgicos para tratamento de sequelas de queimaduras por ano. Em 1996, ocorreu o maior número de cirurgias dentre os 12 anos revisados, seguido de 2004. Quando observamos o mês em que mais procedimentos cirúrgicos foram realizados, chegamos ao mês de março, conforme Tabela 2.




Foram realizadas 1208 cirurgias, 52,8% de todos os procedimentos, por contraturas pós-queimadura (Tabela 3).




A Tabela 4 apresenta a distribuiçao dos tratamentos cirúrgicos realizados para tratamento das sequelas de queimadura. Somandose todas as cirurgias realizadas para contraturas, a liberaçao destas representa 52,84% de todos procedimentos cirúrgicos (1208), ficando em segundo lugar em frequência as ressecçoes, totalizando 584 (25,54%) procedimentos. Ainda da Tabela 4 extraímos, em porcentagem, a cirurgia mais comum (release) com o tratamento dado à área cruenta seguindo a liberaçao da contratura, sendo opçoes: enxertia, zetaplastia ou retalho local após a liberaçao. Os três tratamentos tiveram frequência bastante próxima, com discreta predominância da rotaçao de retalhos locais após a liberaçao (18,94% do total de cirurgias, 35,8% das cirurgias para liberar contraturas). A liberaçao de contratura seguida de zetaplastia atingiu 17,19% de todas cirurgias (393 procedimentos), bem como a liberaçao da contratura seguida de enxertia atingiu 16,71% dos procedimentos (382).




A cirurgia de ressecçao de lesoes (total ou parcial) fica em segundo lugar (25,54%), analisando isoladamente a cirurgia sem associar o método de fechamento da área cruenta. Porém, se associarmos a cirurgia à técnica de fechamento, a ressecçao com fechamento primário é a combinaçao mais realizada, chegando a 19,16% do total de casos operados (438) nos 12 anos analisados.


DISCUSSAO

A lesao por queimadura nao é apenas uma urgência médica, mas desencadeia sérios problemas físicos, psicológicos e financeiros para o paciente, sua família e sociedade. Os efeitos das grandes queimadura podem ser considerados como irreparáveis em todas as áreas da vida do paciente4.

As lesoes por queimaduras nao sao um problema apenas de países em desenvolvimento. Nos Estados Unidos, as queimaduras sao a quarta causa de morte por trauma, aproximadamente 1,25 milhoes de pessoas sofrem queimaduras todos os anos, cerca de 1 milhao de pessoas requerendo tratamento, dessas 100.000 queimaduras sao de moderadas a grave, sendo que 51.000 requerem hospitalizaçao, dessas hospitalizadas ocorrem 5.500 mortes anuais em decorrência de queimaduras5,6. Estatísticas revelam que sao realizados mais de 34 milhoes de procedimentos cirúrgicos relacionados a este tipo de lesao7.

Além de causar morte, queimadura origina cicatrizes desfigurantes e disfuncionais, traumas psicológicos e perda importante de produtividade na área econômica8. Diversos estudos tentam quantificar por meios de escalas o impacto das cicatrizes na vida do indivíduo com sequela de queimadura, porém nota-se que a evidência para a maioria das recomendaçoes para a terapia da cicatriz é limitada, com poucos estudos usando medidas e questionários validados9.

A queimadura grave nao fatal causada por calor, eletricidade, agentes químicos e radiantes é considerada a lesao mais grave que o corpo humano pode sofrer. Ocorre intensa dor durante o tratamento, exige longo período de internaçao, além de múltiplos procedimentos cirúrgicos e reinternaçoes hospitalares. Frequentemente cirurgias reconstrutoras diversas sao necessárias10,11.

Infelizmente, humanos nao se curam por um processo de regeneraçao tecidual, logo a cicatriz é a regra ao insulto do paciente queimado12. Cicatrizes com a melhor qualidade reparativa e ausência de processos patológicos no processo de cicatrizaçao estao entre os principais objetivos a ser atingidos no paciente após a queimadura12,13. Para tanto, o cuidado com o paciente queimado deve ser orientado para atingir o melhor resultado funcional e cosmético almejando sua reabilitaçao14,15.

Estudos epidemiológicos em queimaduras sao importantes para definir a queimadura como um problema na populaçao, determinar as causas mais comuns de queimaduras, as faixas etárias mais acometidas, avaliar a efetividade do serviço local de atendimento aos queimados, avaliar resultados de programas de prevençao, identificar possíveis áreas ou faixas etárias alvo para programas de prevençao e examinar o impacto econômico do tratamento das queimaduras5.

As contraturas sao um elemento importante ao analisar as sequelas de queimaduras, tendo um papel importante em frequência na prática cirúrgica da Unidade de Queimados do departamento de Cirurgia Plástica do HC-FMUSP.

Estudos demonstram uma relaçao direta entre tamanho da ferida e o número de contraturas. A maioria das contraturas ocorreu na mao, cabeça, pescoço e axila12,16. Dentre as 2286 cirurgias realizadas neste estudo incluindo 977 pacientes, 52,8% foram operados por contraturas, principalmente em pescoço (26%) e axila (22%). Dentre as regioes mais acometidas por contraturas destacamos as contraturas de axila, gerando alteraçoes funcionais no movimento após sua ocorrência e apresentando significante prejuízo na cinética do ombro, tronco e até cotovelo, podendo prejudicar a qualidade de vida do paciente. Reabilitaçao agressiva após as queimaduras da regiao axilar é sugerida pela literatura, para prevenir as contraturas axilares, neste estudo 181 pacientes foram submetidos a 298 cirurgias para liberar tais contraturas.

Há demonstraçoes que os pacientes operados muito tempo após a ocorrência da contratura obtiveram maiores dificuldades em seu tratamento, tais como sequela de nervo ou rigidez articular, o que limitou as melhorias com tratamento cirúrgico, portanto sendo melhor o tratamento cirúrgico na fase inicial, logo após a ocorrência de contratura17,18.

As contraturas que necessitaram mais cirurgias por local queimado foram pescoço e axila, com 186 pacientes com queimaduras em pescoço necessitando de 354 cirurgias (1,9 cirurgias por paciente queimado em pescoço), seguida das cirurgias para axila com 181 pacientes necessitando de 298 procedimentos (1,64 cirurgias por paciente queimado em pescoço).

Foram realizadas 1208 cirurgias, 52,8% de todos os procedimentos por contraturas pós-queimadura, acometendo pescoço (26%), axila (22%), seguida de face (14%) e membros superiores (12%). Alguns trabalhos da literatura reportam a contratura (associada ou nao à hipertrofia) como sequela mais comum, chegando a 65% de todas cicatrizes patológicas pós-queimadura12.


Referências

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1. Médica. Doutora em Cirurgia Plástica pela Disciplina de Cirurgia Plástica da Faculdade de Medicina da Universidade de Sao Paulo (FMUSP).
2. Médico Residente de Cirurgia Geral do Hospital das Clínicas da FMUSP.
3. Médico Assistente da Divisao de Queimaduras da Disciplina de Cirurgia Plástica da FMUSP.
4. Estomaterapeuta. Doutora em Ciências da Saúde pela Disciplina de Cirurgia Plástica da FMUSP.
5. Médico da FMUSP.
6. Professor Titular da Disciplina de Cirurgia Plástica do Hospital das Clínicas da FMUSP.

Correspondência:
Nuberto Teixeira Neto
Av. Venâncio Aires, 641, apto. 63
Sao Paulo, SP, Brasil - CEP: 05024-030
E-mail: nubertoneto@uol.com.br

Recebido em: 13/9/2009
Aceito em: 8/11/2009

Trabalho realizado na Unidade de Queimaduras da Divisao de Cirurgia Plástica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de Sao Paulo, Sao Paulo, SP, Brasil.

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