1324
Visualizações
Acesso aberto Revisado por pares
Artigo Original

Trauma elétrico: análise de 5 anos

Electrical trauma: a five-years analysis

Ricardo E. de Miranda1; Rafael C. Paccanaro2; Luiz Fernando Pinheiro3; José Augusto Calil4; Alfredo Gragnani5; Lydia Masako Ferreira6

RESUMO

Objetivo: Avaliar os dados epidemiológicos dos 5 anos de internaçao, relativos aos pacientes vítimas de trauma elétrico no Hospital Municipal do Tatuapé/SP. Método: Realizado estudo transversal retrospectivo de todas as internaçoes por trauma elétrico no Hospital Municipal Carmino do Tatuapé/SP, durante o período de 5 anos. Resultados: Do total de 1.545 internaçoes, 146 (9,45%) foram por trauma elétrico, com média de 29,2 casos por ano, sendo 95% do sexo masculino. A idade de 19 a 50 anos (60,2%) foi a mais acometida, e 64% ocorreram na construçao civil, e nessa mesma taxa ocorreu por passagem de corrente elétrica, 28% por "flash burn" e 16% foi mista. Quanto à superfície corpórea queimada (SQC), 60% dos pacientes apresentavam menos de 10%, 30% tinham entre 10 e 25% de SCQ e 10% possuíam SCQ maior que 25%. Os membros superiores foram os mais acometidos, sendo lesados em 71% dos pacientes, enquanto que os membros inferiores foram atingidos em 29% dos pacientes. Foram realizadas 6 escarotomias, 5 fasciotomias, 63 debridamentos, 58 enxertias, 19 amputaçoes e 47 tratamentos nao operatórios. Conclusoes: O trauma elétrico foi um pequeno número de casos do total das internaçoes, mas foram graves, acometendo homens jovens em acidentes de trabalho, com morbidade elevada, sendo necessárias campanhas de prevençao de acidentes de trabalho.

Palavras-chave: Queimaduras. Queimaduras por corrente elétrica. Epidemiologia.

ABSTRACT

Purpose: To evaluate the epidemiologic data of the five-years of inpatient hospital admission, related to electrical trauma victims at Tatuapé Municipal Hospital/SP. Methods: It was realized a retrospective transversal study of all admissions by electrical trauma at Tatuapé Municipal Hospital, during five-years period. Results: Of a total 1.545 admissions, 146 (9.45%) were electrical trauma, with average of 29.2 patients per year. 95% male, age between 19 and 50 years (60.2%) was foremost, and 64% occurred at civil construction, and at same rate by electrical current passage, 28% by flash burn and 16% was mixed. Related to total burn surface (TBS), 60% presented less than 10%, 30% had between 10 and 25% and 10% presented more than 25% of TBS. The upper limbs were more affected, in 71%, while the lower limbs were affected in 29%. 6 escharotomies, 5 fasciotomies, 63 debridements, 58 skin grafts, 19 amputations and 47 no surgical treatments were realized. Conclusions: Electrical trauma was a small number of inpatient admissions, but they were grave, affecting young men in work accidents, with high morbidity, and prevention campaigns of work accidents should be done.

Keywords: Burns. Burns, electric. Epidemiology.

Com o advento da eletricidade na era moderna surgiu um novo agente etiológico de queimadura, com inúmeras particularidades epidemiológicas, fisiopatológicas e de tratamento: a queimadura elétrica que, como normalmente vem associada a outros traumas, deve ser devidamente denominada de trauma elétrico. O primeiro relato de vítima fatal foi em 1879 por Lyon1, sendo que nos dias atuais o número de vítimas fatais gira em torno de 1000 por ano nos EUA 2,3.

Apesar de corresponder a uma pequena parcela das causas de queimadura (cerca de 5%4,5), esse agente, a eletricidade, apresenta um crescimento em detrimento à queda apresentada pelo total de vítimas de queimaduras. Além disso, a mortalidade também apresenta considerável crescimento nas últimas décadas, a despeito da melhoria dos cuidados médicos6. O trauma elétrico apresenta distribuiçao bimodal, com um pico em crianças menores de seis anos em ambiente doméstico e outro em adultos jovens em ambiente de trabalho7,8.

A queimadura por corrente de baixa tensao apresenta baixa taxa de morbidade e mortalidade, com raras internaçoes, porém as geradas por alta tensao, maiores que 1000 volts, sao de grande gravidade para a vítima9. Como o ambiente industrial concentra muitos equipamentos de alta tensao, é neste local que ocorre a maioria dos acidentes, assim como na construçao civil e mineraçao10. Consequentemente, atinge a parcela economicamente ativa da populaçao, fato que somado à gravidade das lesoes resulta em vários dias de trabalho perdidos e alta mortalidade no ambiente de trabalho, correspondendo à quarta causa de óbitos em ambiente de trabalho11-13. O trauma elétrico ocorre quando existe passagem de corrente elétrica pelo corpo ou o mesmo é lançado, determinado pela corrente alternada ou contínua, respectivamente. Ainda pode ocorrer por "flash burn", quando ocorre lesao pela participaçao do paciente do arco de corrente ou por acendimento de fogo nas roupas14.

Maior número de procedimentos operatórios e dias de internaçao existem para o tratamento do trauma elétrico em relaçao às demais causas de queimaduras15,16.

Devido à gravidade e à complexidade do trauma elétrico, a medida mais eficaz para reduzir a morbidade e a mortalidade é a prevençao, com medidas simples que podem ser adotadas após a identificaçao dos fatores de risco. Para essa identificaçao é necessário que todos os serviços de atendimento às queimaduras e os órgaos responsáveis por políticas de saúde tenham os números desses traumas e o conhecimento da evoluçao do atendimento desses casos, podendo assim programar açoes de longo prazo para possibilitar a diminuiçao do número desses acidentes por meio da prevençao.

O objetivo do estudo é apresentar o levantamento dos casos de trauma elétrico atendidos no Hospital Municipal Carmino Caricchio (Tatuapé), uma das unidades de tratamento de queimados na cidade de Sao Paulo, SP, Brasil, num período de 5 anos.


MÉTODO

Realizado estudo transversal retrospectivo de todas as internaçoes por trauma elétrico no Hospital Municipal Carmino Caricchio (Tatuapé/SP), durante o período de 5 anos, entre janeiro de 2003 e dezembro de 2007. Os prontuários dos casos foram analisados quanto a idade, gênero, profissao, superfície corpórea queimada total, profundidade da lesao, regiao acometida, tratamento instituído e dias de internaçao.


RESULTADOS

Durante o período de 5 anos foram identificados 1.545 internaçoes de variadas etiologias, sendo 146 pacientes (9,45% do total) de etiologia elétrica (Figura 1). A média de internaçoes foi de 29,2 casos por ano, com mediana de 32. Um aumento progressivo no número de internaçoes foi evidenciado de 2003 a 2005, apresentando discreta queda após esse período (Figura 2).


Figura 1 - Distribuiçao das queimaduras internadas na unidade (1.545) e dos traumas elétricos (146) em 5 anos.


Figura 2 - Distribuiçao dos casos de trauma elétrico por anos de análise (2003-2007)



O sexo masculino representou a maioria com 104 casos (95%) e o feminino apenas 6 (5%). A faixa etária mais acometida foi dos 19 aos 50 anos, com 88 casos (60,2%) (Figura 3). Os acidentes de trabalho foram responsáveis por 70% das internaçoes, sendo que 64% ocorreram na construçao civil.


Figura 3 - Distribuiçao dos casos de trauma elétrico por faixas etárias.



Quanto ao tipo de trauma elétrico, 64% foi por passagem de corrente elétrica, 28% considerado "flash burn" e 16% foi diagnosticado como queimadura por mecanismo misto (Figura 4).


Figura 4 - Distribuiçao dos casos de trauma elétrico por tipo de mecanismo de lesao.



A internaçao na fase aguda ocorreu em 69% dos casos e em 31% com mais de 24 horas do acidente, sendo 59% internados em enfermaria e 41% em leitos de UTI (Figuras 5 e 6).


Figura 5 - Distribuiçao dos casos de trauma elétrico pela fase de atendimento.


Figura 6 - Distribuiçao dos casos de trauma elétrico pelo tipo de atendimento na internaçao.



Quanto à superfície corpórea queimada (SQC), 60% dos pacientes apresentavam menos de 10% de SCQ, 30% tinham entre 10 e 25% de SCQ e 10% possuíam SCQ maior que 25% (Figura 7). Os membros superiores foram os mais acometidos, sendo lesados em 71% dos pacientes, enquanto que os membros inferiores foram atingidos em 29% dos pacientes (Figura 8). Em 70% dos casos, os pacientes apresentavam queimaduras profundas de terceiro grau (Figura 9). Quanto ao tratamento instituído, foram realizados 6 escarotomias, 5 fasciotomias, 63 debridamentos, 58 enxertias, 19 amputaçoes e 47 tratamentos nao operatórios (Figura 10).


Figura 7 - Distribuiçao dos casos de trauma elétrico pela superfície corpórea queimada.


Figura 8 - Distribuiçao dos casos de trauma elétrico pelo acometimento da regiao anatômica.


Figura 9 - Distribuiçao dos casos de trauma elétrico pela profundidade da lesao.


Figura 10 - Distribuiçao dos casos de trauma elétrico pelos procedimentos operatórios realizados.



DISCUSSAO

A etiologia elétrica de queimadura representa uma pequena parcela das internaçoes por queimaduras (9,45%), com inúmeras peculiaridades quanto a epidemiologia, gravidade, evoluçao e tratamento. A imensa maioria dos acidentes ocorreu em ambiente de trabalho, em atividades predominantemente masculinas como a construçao civil, explicando a alta incidência no sexo masculino, (95%). A faixa etária economicamente ativa pelo mesmo motivo também foi a mais acometida.

Na populaçao estudada nao se observou uma distribuiçao bimodal, sem pico de incidência em crianças menores de 6 anos, com descrito na literatura por acidentes domésticos. A superfície corpórea queimada, na maioria dos pacientes, se mostrou menor que 10%, no entanto, a gravidade das lesoes se mostra pelo alto índice de internaçao na fase aguda, necessidade de Unidade de Tratamento Intensivo em 41% dos casos e por 70% dos pacientes apresentarem queimaduras de terceiro grau.

O alto acometimento dos membros superiores se justifica pela associaçao deste tipo de queimadura com manipulaçao de equipamentos e/ou instalaçoes elétricas de alta voltagem no ambiente de trabalho. A queimadura elétrica se apresenta com uma pequena superfície corpórea queimada, porém provoca lesao em todo o trajeto da corrente pelo corpo, exigindo, em alguns casos, procedimentos como escarotomias e fasciotomias para preservaçao de vida e/ou viabilidade dos membros. Pelo mesmo motivo é responsável por um número considerável de amputaçoes.


CONCLUSAO

A queimadura elétrica apresenta uma pequena parcela na etiologia das queimaduras com inúmeras peculiaridades que exigem seu conhecimento pelo médico assistente para melhor conduçao e prevençao deste tipo de queimadura. Por se constituir na maioria em acidentes de trabalho atingindo a faixa etária economicamente ativa da populaçao, com tratamento prolongado e de alta complexidade, podemos inferir o grande custo econômico e morbidade da queimadura elétrica. Medidas educacionais, uso correto de equipamentos de proteçao individual e atuaçao dos empregadores na prevençao a acidentes de trabalho representam uma forma simples e econômica para reduçao massiva deste tipo de lesao.


AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem em especial aos pacientes e seus responsáveis, assim como aos responsáveis técnicos da Unidade de Tratamento de Queimaduras do Hospital Municipal do Tatuapé/SP, Dra. Maria de Lourdes Gonçalves e Dr. Vitor Buaride, por permitirem a realizaçao desse levantamento durante o estágio dos residentes do Serviço de Cirurgia Plástica do HSPM, e também a todos os funcionários da UTQ.


REFERENCIAS

1. Acosta AS, Azarcon-Lim J, Ramirez AT. Survey of electrical burns in Philippine General Hospital. Ann N Y Acad Sci. 1999;888:12-8.

2. Skoog T. Electrical injuries. J Trauma. 1970;10(10):816-30.

3. Cawley JC, Homce GT. Occupational electrical injuries in the United States, 1992-1998, and recommendations for safety research. J Safety Res. 2003;34(3):241-8.

4. Lee RC. Injury by electrical forces: pathophysiology, manifestations, and therapy. Curr Probl Surg. 1997;34(9):677-764.

5. Esselman PC, Thombs BD, Magyar-Russell G, Fauerbach JA. Burn rehabilitation: state of the science. Am J Phys Med Rehabil. 2006;85(4):383- 413.

6. Danilla Enei S, Pastén Rojas J, Fasce Pineda G, Díaz Tapia V, Iruretagoyena Bruce M. Mortality trends from burn injuries in Chile: 1954-1999. Burns. 2004;30(4):348-56.

7. Baker MD, Chiaviello C. Household electrical injuries in children. Epidemiology and identification of avoidable hazards. Am J Dis Child. 1989;143(1):59-62.

8. Taylor AJ, McGwin G Jr, Davis GG, Brissie RM, Rue LW 3rd. Occupational electrocutions in Jefferson County, Alabama. Occup Med (Lond). 2002;52(2):102-6.

9. Bingham H. Electrical burns. Clin Plast Surg. 1986;13(1):75-85.

10. John BA, Bena JF, Stayner LT, Halperin WE, Park RM. External cause-specific summaries of occupational fatal injuries. Part I: an analysis of rates. Am J Ind Med. 2003;43(3):237-50.

11. Sarma BP. Epidemiology and man-days loss in burn injuries amongst workers in an oil industry. Burns. 2001;27(5):475-80.

12. Floyd II HL, Andrews JJ, Capelli-Schellpfeffer M, Neal TE, Liggett DP, Saunders LF. Safeguarding the electric workplace. IEEE Ind Appl Mag. 2004;10(1):18-24.

13. Janicak CA. Occupational fatalities caused by contact with overhead power lines in the construction industry. J Occup Environ Med. 1997;39(4):328-32.

14. Hettiaratchy S, Dziewulski P. ABC of burns: pathophysiology and types of burns. BMJ. 2004;328:1427-9.

15. Cochran A, Eldman LS, Saffle JR, Morris SE. Self-reported quality of life after electrical and thermal injury. J Burn Care Rehabil. 2004;25(1):61-6.

16. Arnold OBD, Purdue GF, Kowalske K, Helm PA, Burris A, Hunt JL. Electrical injury: a 20 year review. J Burn Care Rehabil. 2004;25(6): 479-84.










1. Residente de Cirurgia Plástica do Hospital do Servidor Público Municipal de Sao Paulo.
2. Residente de Cirurgia Plástica do Hospital do Servidor Público Municipal de Sao Paulo.
3. Médico Assistente da Unidade de Tratamento de Queimaduras do Hospital Municipal do Tatuapé.
4. Chefe do Serviço de Cirurgia Plástica do Hospital do Servidor Público Municipal de Sao Paulo.
5. Professor Afiliado da Disciplina de Cirurgia Plástica da Universidade Federal de Sao Paulo.
6. Professora Titular da Disciplina de Cirurgia Plástica e Chefe do Departamento de Cirurgia da Universidade Federal de Sao Paulo.

Correspondência:
Alfredo Gragnani
Rua Napoleao de Barros, 715 - 4º andar - Vila Clementino
Sao Paulo, SP, Brasil - CEP 04024.002
Email: alfredogf@ig.com.br

Recebido em: 20/5/2009
Aceito em: 1/8/2009

Trabalho realizado no Hospital Municipal do Tatuapé, Sao Paulo, SP, Brasil.

© 2024 Todos os Direitos Reservados