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Artigo Original

Visibilidade das cicatrizes de queimaduras percebida pelos pacientes durante o primeiro ano de reabilitação

Visibility of burns scars in patients' perceptions during the first year of rehabilitation

Maria Elena Echevarría-Guanilo1; Caroline Lemos Martins2; Karen Jeanne Cantarelli3; Natália Gonçalves4; Lídia Aparecida Rossi5

RESUMO

OBJETIVO: Analisar a percepçao da visibilidade das cicatrizes de pacientes em processo de reabilitaçao de queimaduras, em relaçao ao sexo, superfície corporal queimada (SCQ), regioes do corpo acometidas e mudanças no hábito de se vestir.
MÉTODO: Estudo descritivo e transversal, com pacientes em acompanhamento ambulatorial na Unidade de Queimados do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirao Preto, realizado no período de junho de 2004 a junho de 2008.
RESULTADOS: Foram entrevistados 71 pacientes, sendo 76,1% do sexo masculino, com idade média de 35,6 anos. O local de maior ocorrência dos acidentes foi o domicílio (56,3%) e o principal agente etiológico foi o álcool/produtos inflamáveis (64,8%). A média de SCQ foi 17,3 ± 12,5%. Entre o 4º, 6º, 9º e 12º mês após alta hospitalar, os entrevistados que referiram suas cicatrizes como visíveis apresentaram resultados significativos para as mudanças no hábito de se vestir (p<0,00), queimaduras nos membros superiores (p<0,00), queimaduras na cabeça/face (p<0,03) e SCQ maior que 20% (p<0,03).
CONCLUSOES: A SCQ, queimaduras em regioes do corpo mais expostas e mudanças no hábito de se vestir sugerem associaçao com a percepçao das cicatrizes como visíveis por parte dos indivíduos que sofreram queimaduras.

Palavras-chave: Queimaduras. Cicatriz. Autoimagem.

ABSTRACT

OBJECTIVE: To analyze the perceived visibility of scars among patients going through rehabilitation after burns, in relation to gender, total body surface area (TBSA), affected body region and changes in dressing habits.
METHODS: Descriptive and cross-sectional study, involving patient under outpatient follow-up at the Burns Unit of the Ribeirao Preto Medical School Hospital das Clínicas, between June 2004 and June 2008.
RESULTS: Seventy-one patients were interviewed, 76.1% of whom were male, with a mean age of 35.6 years. The most frequent accident site was the home (56.3%) and the main causal agent was alcohol/inflammable products (64.8%). The mean TBSA was 17.3 ± 12.5%. Among the 4th, 6th, 9th and 12th month after discharge, the interviewees who referred to their scars as visible showed significant results for dressing habit changes (p<0.00), superior limb burns (p<0.00), head/face burns (p<0.03) and TBSA higher than 20% (p<0.03).
CONCLUSIONS: The TBSA, burns in more exposed body regions and changes in dressing habits are related to the perceived visibility of scars by burns victims.

Keywords: Burns. Cicatrix. Self concept.

Os avanços tecnológicos no atendimento às vítimas de queimaduras tem contribuído para reduçao das taxas de morbidade devido à melhoria nacapacidade de reanimaçao, cuidados com feridas, controle de infecçao, dentre outras açoes realizadas pela equipe multiprofissional, que refletem diretamente nos resultados funcionais1.

Diante disso, há crescente investimento em pesquisas que visam conhecer o perfil das vítimas de queimaduras2-4, principais agentes etiológicos, locais de ocorrência dos acidentes e tempo de exposiçao, para o aprimoramento de condutas estabelecidas durante o processo de reabilitaçao5,6.

As repercussoes das sequelas desses acidentes no cotidiano dos indivíduos trazem alteraçoes na saúde, como limitaçoes físicas e emocionais; mudanças no estilo de vida e no papel social, como afastamento do trabalho e do convívio social devido à percepçao negativa da autoimagem em decorrência das cicatrizes e alteraçoes corporais7.

A imagem corporal e a identidade dos indivíduos podem ser afetadas quando as queimaduras atingem locais do corpo de maior exposiçao. Assim, as cicatrizes localizadas em regioes menos expostas, as quais podem ser cobertas por roupas, ocasionariam menor desconforto ao indivíduo do que as localizadas em áreas mais expostas. Durante o processo de completa cicatrizaçao, a evidência do desfiguramento pode, ou nao, ser incorporada na vida do doente8.

Entretanto, a maior parte das vítimas de queimaduras apresenta descontentamento com a alteraçao da aparência física e mostra-se preocupada com a necessidade de escondê-la para evitar a curiosidade dos outros devido à aparência das cicatrizes9.

Pelo exposto, o objetivo do presente estudo foi analisar a percepçao da visibilidade das cicatrizes de pacientes vítimas de queimaduras em relaçao ao sexo, superfície corporal queimada (SCQ), regioes do corpo acometidas e mudanças no hábito de se vestir.


MÉTODO

Os dados analisados fazem parte da pesquisa intitulada "Validaçao da Burns Specific Pain Anxiety Scale - BSPAS e da Impact of Event Scale - IES para brasileiros que sofreram queimaduras", realizada entre junho de 2004 e junho de 2008, a qual foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirao Preto da Universidade de Sao Paulo (FMRP-USP) (protocolo: 11571/2003).

Participaram do estudo adultos maiores de 18 anos, que receberam atendimento durante a fase aguda na Unidade de Queimados da FMRPUSP, estavam em acompanhamento ambulatorial, nao apresentavam dificuldades de compreensao, aceitaram participar do estudo e assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido.

Os participantes foram entrevistados durante o acompanhamento ambulatorial entre o 4º e 6º mês e entre o 9º e 12º mês, após a alta hospitalar. As entrevistas foram individuais e em ambiente privativo.

As variáveis de interesse foram: sexo, idade, local do acidente, agente etiológico, SCQ, regiao corporal acometida, visibilidade das cicatrizes referida pelo paciente e mudança no hábito de se vestir.

Os dados foram processados no programa Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) versao 19.0. Realizaram-se análises descritivas e de tendência central, frequência simples para variáveis categóricas e teste qui-quadrado para identificaçao de associaçao entre variáveis dicotômicas.


RESULTADOS

Participaram do estudo 71 sujeitos, dos quais 54 (76,1%) eram do sexo masculino, com idade média de 35,6 ± 12,6 anos, sendo 62% maiores de 30 anos. O local de maior ocorrência dos acidentes foi o domicílio (56,3%) e o principal agente etiológico, o álcool/ produtos inflamáveis (64,8%). A média de SCQ foi 17,3 ± 12,5% e 50 (70,4%) sujeitos apresentaram SCQ inferior a 20% (Tabela 1).




Entre o 4º e 6º mês após alta hospitalar, os entrevistados que referiram suas cicatrizes como visíveis apresentaram resultados significativos para SCQ maior que 20% (p<0,03), queimaduras na cabeça/face (p<0,03) e nos membros superiores (p<0,00) e, mudanças no hábito de se vestir (p<0,00). Entretanto, as variáveis sexo, tronco anterior/posterior e membros inferiores nao se apresentaram significativas para a percepçao e relato das cicatrizes como visíveis (Tabela 2). Destaca-se que diversos participantes apresentaram mais de uma regiao corporal atingida.




Entre o 9º e 12º mês, o número de pacientes que apontaram suas cicatrizes como visíveis foi significativamente maior entre os que apresentaram SCQ maior que 20% (p<0,00) e os que referiram mudança no hábito de se vestir (p<0,00), assim como entre os que tiveram queimaduras na cabeça/face (p<0,03) e nos membros superiores (p<0,00) (Tabela 2).


DISCUSSAO

Entre junho de 2004 e junho de 2008 foram entrevistados 71 indivíduos (76,1% do sexo masculino) adultos que se encontravam em acompanhamento ambulatorial no primeiro ano após alta hospitalar. Dados semelhantes foram encontrados por outros autores, os quais descreveram maior número de vítimas de queimaduras do sexo masculino2,10 entre 31 e 50 anos (média de 33,7 anos)11 .

Em relaçao ao local do acidente, 56,3% dos indivíduos sofreram queimaduras no domicílio e 33,8% no local de trabalho e o agente etiológico predominante foi álcool/produtos inflamáveis (64,8%). Estes resultados condizem com a literatura, ao relacionar maior frequência de queimaduras em ambientes domiciliares e laborais4,12 e a manipulaçao inadequada de líquidos inflamáveis10,13.

Com relaçao à extensao das queimaduras, a média foi 17,3 ±12,5% e 70,4% dos sujeitos apresentaram SCQ <20%. Autores encontraram SCQ média de 20,8% (variando de 1% a 60%)12. Embora a maioria dos participantes apresentasse SCQ <20%, muitos possuíam queimaduras em tórax (n=49) e membros superiores (n=51), áreas consideradas expostas do corpo. Autores expoem que as queimaduras em áreas visíveis, como a face, pescoço e membros inferiores, sao as que mais ocasionam mudanças na vida social, por serem áreas de maior exposiçao durante a realizaçao das atividades6, especialmente nas estaçoes de altas temperaturas.

Entre os participantes, foi possível identificar associaçao entre os que referiram suas cicatrizes como visíveis e os que apresentaram SCQ >20%, queimaduras na cabeça/face e membros superiores e os que relataram mudanças no hábito de se vestir. Relaçoes que permaneceram significativas ao longo do tempo, ao serem entrevistados entre o 9º e 12º mês após a alta hospitalar. Nao houve associaçao entre a identificaçao das cicatrizes como visíveis em relaçao ao sexo e a presença de queimaduras em cervical, tronco anterior/posterior e membros inferiores, entre o 4º e 6º mês, após alta hospitalar (Tabela 2).

Embora seja possível identificar uma diminuiçao entre os indivíduos que relataram suas cicatrizes como visíveis e apresentavam SCQ <20% ao longo do tempo, a percepçao da visibilidade das cicatrizes permaneceu significativamente maior entre os que apresentaram SCQ >20%. Autores apontam que mudanças no hábito de se vestir, devido às cicatrizes, foram relatadas por 43,1% dos participantes6. Estes afirmaram o desejo de evitar expor as cicatrizes ao sol ou ao olhar das pessoas em seu ambiente social6 e que o impacto negativo das lesoes pode ser sentido por um longo período de tempo em número significativo de pessoas14. Essas açoes foram observadas em parte do grupo estudado pela adoçao de vestimentas para proteger/esconder as cicatrizes.

O período de maturaçao da ferida é determinante para o aspecto futuro das cicatrizes, por isso, deve-se orientar o paciente queimado a evitar a exposiçao ao sol15, sendo necessária a adoçao de novas condutas, como uso de blusa/camisas de mangas longas (queimaduras em membros superiores), chapéus/bonés (queimadura de face) e protetor solar.

Além disso, a percepçao de si, durante o amadurecimento das cicatrizes, principalmente quando o indivíduo percebe sua notoriedade frente ao espelho ou ao chamar a atençao dos outros, pode gerar sentimentos negativos, como revolta, vergonha ou constrangimento16 , incentivando a mudança no hábito de se vestir para cobrir cicatrizes em áreas expostas.

Ao perceber as alteraçoes corporais produzidas pela queimadura, os indivíduos podem enfrentar sentimentos negativos, como distúrbios de autoimagem. Mudanças no hábito de se vestir apresentam-se como um mecanismo empregado para aliviar o constrangimento e olhares dos outros frente às cicatrizes. Essa adaptaçao é um processo natural de defesa na tentativa de melhorar a aparência física e reduzir sentimentos depreciativos.

As cicatrizes localizadas em áreas mais expostas podem causar desconforto em pacientes queimados, porém cicatrizes em outras regioes, como tórax, abdome e coxas, também poderiam ser relevantes para a autoimagem e a autoestima do paciente17. Em muitas ocasioes, marcas ou sequelas de queimaduras podem ocasionar impressao negativa e assustadora aos olhos de outras pessoas. Dessa forma, os sobreviventes de acidentes por queimaduras passam a evitar situaçoes de exposiçao do corpo e afastam-se do convívio social8.

As principais dificuldades enfrentadas por esses pacientes envolvem a realizaçao de atividades rotineiras, como vestir-se, pentearse, escovar os dentes e alimentar-se18. Assim, transformaçoes no aspecto físico, como presença de cicatrizes, perda de mobilidade ou amputaçoes podem gerar limitaçoes relacionadas ao trabalho, atividades de lazer e vida doméstica8. Nessa perspectiva, emerge a necessidade dos profissionais de saúde atuarem na formulaçao de estratégias que visem à reduçao das dificuldades vivenciadas pelos pacientes queimados, como promover dispositivos de adaptaçao para membros afetados.

A perda é uma experiência dolorosa e, muitas vezes, difícil de esquecer. No entanto, com o passar do tempo, o indivíduo começa a reorganizar a sua vida, aceitando sua nova imagem corporal. No decorrer do processo de reabilitaçao, os indivíduos passam a integrar as cicatrizes (visíveis e invisíveis) a sua vida, mesmo sem aceitá-las8.

A preocupaçao com o aspecto das cicatrizes tem início na internaçao hospitalar, portanto, a equipe multidisciplinar deve estar atenta e propor estratégias que previnam futuras alteraçoes emocionais.


CONCLUSOES

A SCQ, queimaduras em regioes do corpo mais expostas e mudanças no hábito de se vestir sugerem associaçao com a percepçao das cicatrizes como visíveis por parte dos indivíduos que sofreram queimaduras, comprometendo a vida socia,l como, por exemplo, mudar a maneira de se vestir. Mudanças no hábito de se vestir apresentam-se como mecanismo empregado pelos pacientes para esconder as cicatrizes de regioes expostas e aliviar o constrangimento e olhares dos outros.

O atendimento multiprofissional precoce é essencial para a reduçao do sofrimento e promoçao de meios para a reelaboraçao da autoimagem de pacientes queimados.


AGRADECIMENTOS

Os autores agradecem à Fundaçao de Amparo à Pesquisa do Estado de Sao Paulo (FAPESP).


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1. Professora Assistente da Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Pelotas, Membro do Núcleo de Condiçoes Crônicas e suas Interfaces - NUCCRIN, Pelotas, RS, Brasil.
2. Mestranda do Programa de Pós-graduaçao da Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Pelotas; Bolsista CAPES. Membro do NUCCRIN, Pelotas, RS, Brasil.
3. Mestranda do Programa de Pós-graduaçao da Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Bolsista CAPES, Porto Alegre, RS, Brasil.
4. Doutoranda do Programa Interunidades de Doutoramento em Enfermagem, Escola de Enfermagem de Ribeirao Preto, Universidade de Sao Paulo; Bolsista CNPQ, Ribeirao Preto, SP, Brasil.
5. Professora Titular da Escola de Enfermagem de Ribeirao Preto, Universidade de Sao Paulo; Bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq nível 1 B, Ribeirao Preto, SP, Brasil.

Correspondência:
Maria Elena Echevarría-Guanilo
Rua Barao de Azevedo Machado, 81/ 204
Pelotas, RS, Brasil - CEP: 96020-150
E-mail: elena_meeg@hotmail.com

Artigo recebido: 5/3/2012
Artigo aceito: 11/6/2012

Trabalho realizado no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirao Preto da Universidade de Sao Paulo (FMRP-USP). Ribeirao Preto, SP, Brasil.

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